Meras Asserções - Dan Barker

Mais ou menos seis meses depois da minha desconversão, almocei com Hal Spencer, presidente da Manna Music. Sua empresa é líder em produção de música cristã. Sob a luz da minha desconversão para o ateísmo, eu queria comprar de volta os direitos autorais dos meus musicais que eles continuavam a promover. "De jeito nenhum", ele disse. "Seus musicais são itens fortíssimos no nosso catálogo, e estão entre as poucas coisas que nos mantém no mercado." Falando em sentimentos confusos! Eu costumava ficar excitado só de ouvir esses relatos enaltecedores. Não mais.


Nossa conversa terminou indo para uma daquelas discussões intermináveis e geralmente sem resultados sobre desígnio, primeira causa, moralidade, milagres, ciência, fé e ateísmo. Quando estávamos pagando a conta Hal virou-se para mim com um sorriso e disse, "suponho que isso significa que você não escreverá mais musicais para nós?"

Eu ri e disse, "Claro que vou! Mas duvido que vocês publicariam qualquer coisa que eu gostaria de dizer agora."

As publicações cristãs são uma grande indústria. Você já esteve numa livraria cristã? (Eles são as vezes conhecidos eufemisticamente como "Livrarias da Família." Sou tentado a entrar e perguntar se eles tem alguma leitura para famílias atéias). Você deveria visitar uma de vez em quando, só para ver contra o que nós livres-pensadores lutamos. Você verá milhares de livros de centenas de editoras, uma pletora de álbums de dúzias de gravadoras, prateleiras de bíblias de todos os tamanhos, cores e versões. Você pode ler sobre educação infantil, jardinagem, aborto, psicologia, adoração, história, política, romance, computadores, humanismo e o movimento feminista - tudo sob uma perspectiva cristã. E ficção científica, é claro. Você também pode encontrar alguns dos meus títulos; mas me perdoe pois eu não sabia o que estava fazendo.

Na véspera do Natal entrei na livraria cristã Upland Light, por nenhuma razão particular, e fui subitamente abordado por um ministro local que havia escutado que eu tinha me tornado um herége, e pensava que eu precisava aprender algumas coisas sobre o debate criação/evolução. (Eu tinha. E ele também). Depois do nosso bate papo "amigável", fiz um passeio nostálgico pelos corredores sacros da leitura religiosa. Eu estava particularmente interessado em encontrar livros que, uma vez, eu havia considerado ótimos, livros que eu gostaria de reler sob uma nova perspectiva. Então peguei Mero Cristianismo de C.S. Lewis.

***

C.S. Lewis é um escritor cristão muito popular. Ele foi professor em Oxford que alegava ter se convertido do ateísmo para o cristianismo. Muitas pessoas já foram influenciadas pelo seu trabalho. Ele é conhecido pela sua série para crianças Narnia e por muitos livros que popularizam a teologia, incluindo Cartas Screwtape (seguindo a linha Cartas da Terra de Twain), O Grande Divórcio (um passeio do inferno ao céu explicando que as pessoas estão no inferno porque elas escolheram ficar lá), Milagres, O Regresso dos Peregrinos, O Problema do Sofrimento, e uma trilogia de ficção científica. Ele escreve num estilo legível e convincente, é freqüentemente humorístico e geralmente faz a gente pensar.

Mero Cristianismo, o livro mais popular de Lewis, é na verdade três livros em um: 1."Certo e Errado Como Uma Pista para o Significado do Universo," 2. "No Que os Cristãos Acreditam," e 3. "O Comportamento Cristão", todos adaptados a partir de uma série de palestras no rádio. O título do livro vem da tentativa de Lewis de limpar o cristianismo de tudo que não é essencial, chegando aos "meros" pontos básicos do que significa ser um cristão. Como um crente, me lembro de ter ficado impressionado com o primeiro livro, uma vez que ele nos dá o que muitos consideram ser argumentos convincentes para a existência de uma divindade. Tenho um tio que diz que Mero Christianismo foi o fator principal na sua "conversão" para um compromisso mais profundo. Então quando reli o livro eu estava ansioso para reexaminar seus argumentos.

Lewis usa longas anedotas para argumentar sobre a existência de uma "Lei Natural" de moralidade dentro de cada humano. Diferentemente da lei da gravidade entretanto, a lei moral pode ser desobedecida.

"Essa lei foi chamada A Lei da Natureza", ele escreveu, "porque as pessoas pensavam que todo mundo a conhecia por natureza e por isso não precisava ser ensinada. Eles não querem dizer, é claro, que você não poderia encontrar uma exceção aqui e ali que não a conhecia, da mesma forma que você encontra algumas pessoas que são daltônicas ou surdas para certos tons. Mas levando em conta a raça humana como um todo, eles pensavam que a idéia humana do comportamento decente era óbvia para todos. Acredito que eles estavam certos".

Como exemplo, Lewis aponta a oposição aos nazistas: "Qual era o sentido em dizer que o inimigo estava errado a menos que o Correto fosse uma coisa real que, no fundo, os nazistas sabiam tão bem quanto nós e deveriam ter praticado? Se eles não tínham nenhuma noção do que queremos dizer por "correto", então, embora ainda tivéssemos que lutar contra eles, não poderíamos mais tê-los culpado mais por isso do que pela cor de seus cabelos."

Lewis não acredita que as diferentes civilizações tiveram moralidades diferentes: " . . . isso nunca chegou a ser algo como uma total diferença." (Oh? E quanto à poligamia, ao infanticídio, ao canibalismo, ao espancamento de esposas, à auto-mutilação, à castração, ao incesto e à guerra, todos culturalmente sancionados?) Ele ignora os críticos que alegam que a moralidade é o resultado do instinto de sobrevivência da espécie, dizendo que somos livres para obedecer ou desobedecer esse "instinto" e tomar nossas decisões por um padrão mais alto do que é Certo ou Errado. "Você poderia muito bem dizer que, a partitura que lhe manda num dado momento tocar uma das notas no piano e não outra, é ela mesma é uma das notas do teclado. A Lei Moral nos diz o tom que temos que tocar: nossos instintos são meramente as teclas."

Você pode ver que Lewis aficcionado por discutir usando analogias. (Toda sua série Narnia é uma enorme metáfora.) Às vezes isso pode ser um modo eficaz de se comunicar com leitores não críticos; mas também pode ser enganoso e evasivo se usado no lugar do raciocínio disciplinado. Meras asserções (um título melhor para seu livro) pode ser usado no lugar de comentários cuidadosamente defendidos, e pode ser "grudado" na mente com uma analogia que, empora talvez seja apta, no entanto circunda a pergunta sobre a veracidade da idéia básica.

Por exemplo, é verdade que todas as pessoas em todas as culturas compartilham um conhecimento básico de uma Lei Moral? Alguns discordariam. E sua analogia sobre a musica do piano exclui completamente a possibilidade de improvisação e de composição, transformando nós todos em robôs. Além disso, a partitura é externa ao piano e ela pode ser trocada por outra canção se desejado. E os pianos não crescem, aprendem e se machucam, como pessoas . . . e assim por diante. Analogias podem ser úteis para ilustrar um ponto, mas apoiar uma asserção crua só com uma analogia pode ser um tiro pela culatra.

Mesmo se for verdade que todas as culturas compartilham uma moralidade comum, por que isso provaria uma inteligência suprema? Afinal, nós humanistas às vezes não alegamos que há um fio comum de valores humanistas correndo pela história através de linhas culturais e religiosas? A tentativa de Lewis de pular da plataforma trêmula de uma "Lei Moral Natural" até os braços de uma amável divindade é até menos convincente do que sua premissa básica.

Primeiramente, Lewis tira a idéia de divindade da história notando que há duas grandes visões mundiais: a materialista e a religiosa. A visão materialista do mundo faz perguntas que só podem ser direcionadas à ciência ("Qual é a estrutura da vida?"); mas a visão religiosa do mundo levanta perguntas que pressupõem um contexto maior ("Qual é o significado da vida?"). A ciência observa o mundo material mas a religião vê o lado mental, não material. (Onde ele coloca a filosofia e a psicologia?) Se há um Deus, Lewis afirma, então Deus é muito mais parecido com a mente do que qualquer outra coisa, e se esse Deus comunica-se conosco, é mais provável que ele o fará através de nossas mentes, não através do mundo material. (Como Lewis sabe isso?) E isso é exatamente o que essa sábia divindade fez: Ele colocou dentro de nós essa "lei de moralidade" que nos conecta com o reino superior, que não pode nunca ser verificada com a mera ciência.

Então, de acordo com Lewis, se você quiser encontrar Deus, procure dentro de você mesmo para descobrir esse desejo de moralidade e perceba que você quebrou essa lei, todos os dias. Mero Christianismo acaba recorrendo ao velho sermão: você é um pecador e sabe disso, não se sente mal? Então, quando estiver apropriadamente envergonhado, você verá a beleza do plano da salvação que esta divindade revelou através da morte e ressurreição de Jesus Cristo (o qual Lewis toma como um ser historicamente real).

Lewis não fala sobre ética situacional nesse livro, apesar disso ser relevante. Ele assume, eu acho, que todos nós concordaríamos no que seria "cosmicamente" correto em cada instante. De fato, Lewis está confiante que seus leitores serão convencidos tacitamente da precisão desta linha de pensamento. (Deus existe porque temos moral e não teríamos moral se Deus não existisse). E Lewis pode se dar ao luxo de relachar, eu acho, porque a maioria de seus leitores são cristãos que compram o livro porque estão procurando por confirmação. Eles não são caçadores céticos da verdade. Qualquer escritor pode capturar uma audiência simpática através da capitalização daquelas áreas que todos "sabem" ser certa.

A moralidade humanista é um código de ética baseado no valor e na qualidade da vida humana. Não é derivada de escrituras absolutas em tábuas de pedra cósmica. A moralidade é relativa a coisas humanas como alegria, saúde, paz, beleza, amor, felicidade e justiça. É a preferência destas ações e idéias que eleva a condição humana sobre aquelas que a ameaçam. Os nazistas, que eram em sua maioria católicos e luteranos, estavam errados não porque quebraram uma lei absoluta mas porque profanaram a vida humana. Apesar da moralidade humanista não afirmar os certos e errados relativos à condição humana, ela é flexível e livre para melhorar. Por exemplo, é inconcebível que algo como o genocídio possa algum dia ser considerado moral, e que algo como a gentileza genuína possa ser considerada imoral; mas sempre haverá um meio termo entre esses extremos, para coisas como o controle de natalidade, o divórcio, a dieta, a legítima defesa ou o patriotismo, que dependerão da situação.

Qualquer moralidade que for baseada numa estrutura inflexível, acima e além da humanidade, é perigosa para os seres humanos. A história está cheia de exemplos do que a "moralidade" religiosa tem feito para piorar nosso estado. Cidades inteiras podem ser exterminadas sem nenhum problema em nome de Deus. As "bruxas" da sociedade podem ser eliminadas. O livre-pensamento pode ser suprimido, esmagando qualquer esperança de progresso. (Por qual outro motivo os séculos dominados pelos cristãos foram chamados de obscurantismo?) Sob a moralidade cristã vale tudo se for para seguir adiante com o plano de Deus. No lugar da Lei da Moralidade de Lewis, mais pessoas iluminadas ganhariam a razão e a bondade: princípios que são maleáveis e humanos, não rígidos e frios.

Então, agora tenho que me perguntar por que uma vez pensei que Mero Christianismo era tão especial. Porque ele me disse o que eu queria ouvir. Como um livre-pensador, não estou mais satisfeito com meras asserções, com o reaproveitamento criativo de mitos. O livre-pensamento exige provas no lugar de analogias, e informação ao invés de dogmas.

O que você acha? Eu deveria sacar os cheques dos royalties que continuo a receber dos meus musicais cristãos? Agora tenho um dilema moral com o qual luto através de todo o percurso até o banco.

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