O Livro do Desassossego - Fernando Pessoa - Parte 5

Com um charuto caro e os olhos fechados é ser rico.

Como quem visita um lugar onde passou a juventude consigo, com um cigarro barato, regressar inteiro ao lugar  da minha vida em que era meu uso fumá-los. E através do sabor leve do fumo todo o passado revive-me.

Outras vezes será um certo doce. Um simples bombom de chocolate escangalha-me às vezes os nervos com o excesso de recordações que os estremece. A infância! E entre os meus dentes que se cravam na massa escura e macia, trinco e gosto as minhas humildes felicidades de companheiro alegre de soldados de chumbo, de cavaleiro congruente com a cana casual meu cavalo. Sobem-me as lágrimas aos olhos e junto com o sabor do chocolate mistura-se ao meu sabor a minha felicidade passada, a minha infância ida, e pertenço voluptuosamente à suavidade da minha dor.

Nem por simples é menos solene este meu ritual do paladar.


Mas é o fumo do cigarro o que mais espiritualmente me reconstrói momentos passados. Ele apenas roça a minha consciência de ter paladar. Por isso mais em grupo e transferência me evoca as horas que morri, mais longínquas as faz presentes, mais nevoentas quando me envolvem, mais etéreas quando as corporizo. Um cigarro ao mentol, um charuto barato toldam de suavidade alguns meus momentos. Com que sutil plausibilidade de sabor-aroma reergo os cenários mortos e empresto outra vez as cores de um passado, tão século dezoito sempre pelo afastamento malicioso e cansado, tão medievais sempre pelo irremediavelmente perdido.

[401]

Criei para mim, fausto de um opróbrio, uma pompa de dor e de apagamento. Não fiz da minha dor um poema, fiz dela, porém, um cortejo. E da janela para mim contemplo, espantado, os ocasos roxos, os crepúsculos vagos de dores sem razão, onde passam, nos cerimoniais do meu descaminho, os perigos, os fardos, os falhanços da minha incompetência nativa para  existir. A criança, que nada matou em mim, assiste ainda, de febre e fitas, ao circo que me dou. Ri dos palhaços, sem haver cá fora do circo; põe nos habilidosos e nos acrobatas olhos de quem vê ali toda a vida. E assim, sem alegria, mas contente, entre as quatro paredes do meu quarto dorme, por inocência, com o seu pobre papel feio e gasto, toda a angústia insuspeita de uma alma humana que transborda, todo o desespero sem remédio de um coração a quem Deus abandonou.

Caminho, não pelas ruas, mas através da minha dor. As casas alinhadas são os incompreendedores que me cercam na alma; os meus passos soam no passeio como um dobre ridículo a finados, um ruído de espanto na noite, final como um recibo ou uma jaula.

Separo-me de mim e vejo que sou um fundo dum poço.

Morreu quem eu nunca fui. Esqueceu a Deus quem eu havia de ser. Só o interlúdio vazio.

Se eu fosse músico escreveria a minha marcha fúnebre, e com que razão a escreveria!



[402]

Poder reencarnar numa pedra, num grão de pó – chora-me na alma este desejo.

Cada vez acho menos sabor a tudo, mesmo a não achar sabor a nada.



[403]

Não me encontro um sentido... A vida pesa... Toda a emoção é demais para mim... O meu coração é um privilégio de Deus... A que cortejos pertenci, que um cansaço de não sei que pompas embala a minha saudade? E que pálios? que seqüências de estrelas? que lírios? que flâmulas? que vitrais?

Por que mistério à sombra de árvores passaram as melhores fantasias, que neste mundo tanto se recordam das águas, dos ciprestes e dos buxos e não encontram pálios para os seus préstitos senão entre conseqüências de se abster?

Caleidoscópio

Não fales... Aconteces demasiado... Tenho pena de te estar vendo...

Quando serás tu apenas uma saudade minha? Até lá quantas tu não serás! E eu ter de julgar que te posso ver é uma ponte velha onde ninguém passa... A vida é isto. Os outros abandonaram os remos... Não há já disciplina nas coortes... Foram-se os cavaleiros com a manhã e o som das lanças... Teus castelos ficaram esperando estar desertos... Nenhum vento abandonou os renques das árvores ao cimo... Pórticos inúteis, baixelas guardadas, prenúncios de profecias – isso pertence aos crepúsculos prosternados nos templos e não agora, ao encontrarmo-nos, porque não há razões para tílias dando sombra senão teus dedos e o seu gesto tardio...

Razão de sobra para territórios remotos... Tratados feitos por vitrais de reis... Lírios de quadros religiosos... Por quem espera o séqüito?...

Por onde se ergueu a águia perdida?



[404]

Enrolar o mundo à roda dos nossos dedos, como um fio ou uma fita com que brinque uma mulher que sonha à janela.

Resume-se tudo enfim em procurar sentir o tédio de modo que ele não doa.

Seria interessante poder ser dois reis ao mesmo tempo: ser não a uma alma de eles dois, mas as duas almas.



[405]

A vida, para a maioria dos homens, é uma maçada passada sem se dar por isso, uma coisa triste composta de intervalos alegres, qualquer coisa como os momentos de anedotas que contam os veladores de mortos, para passar o sossego da noite e a obrigação de velar. Achei sempre fútil considerar a vida como um vale de lágrimas: é um vale de lágrimas, sim, mas onde raras vezes se chora. Disse Heine que, depois das grandes tragédias, acabamos sempre por nos assoar. Como judeu, e portanto universal, viu com clareza a natureza universal da humanidade.

A vida seria insuportável se tomássemos consciência dela. Felizmente o não fazemos. Vivemos com a mesma inconsciência que os animais, do mesmo modo fútil e inútil, e se antecipamos a morte, que é de supor, sem que seja certo, que eles não antecipam, antecipamo-la através de tantos esquecimentos, de tantas distrações e desvios, que mal podemos dizer que pensamos nela.

Assim se vive, e é pouco para nos julgarmos superiores aos animais. A nossa diferença deles consiste no pormenor puramente externo de falarmos e escrevermos, de termos inteligência abstrata para nos distrairmos de a ter concreta, e de imaginar coisas impossíveis. Tudo isso, porém, são acidentes do nosso organismo fundamental. O falar e escrever nada fazem de novo no nosso instinto primordial de viver sem saber como. A nossa inteligência abstrata não serve senão para fazer sistemas, ou idéias meio-sistemas, do que nos animais é estar ao sol. A nossa imaginação do impossível não é porventura própria, pois já vi gatos olhar para a lua, e não sei se não a quereriam.

Todo o mundo, toda a vida, é um vasto sistema de inconsciências operando através de consciências individuais. Assim como com dois gases, passando por eles uma corrente elétrica, se faz um líquido, assim com duas consciências – a do nosso ser concreto e a do nosso ser abstrato – se faz, passando por elas a vida e o mundo, uma inconsciência superior.

Feliz, pois, o que não pensa, porque realiza por instinto e destino orgânico o que todos nós temos que realizar por desvio e destino inorgânico ou social. Feliz o que mais se assemelha aos brutos, porque é sem esforço o que todos nós somos com trabalho imposto; porque sabe o caminho de casa, que nós outros não encontramos senão por atalhos de ficção e regresso; porque, enraizado como uma árvore, é parte da paisagem e portanto da beleza, e não, como nós, mitos da passagem, figurantes de trajo vivo da inutilidade e do esquecimento.



[406]

Não creio alto na felicidade dos animais, senão quando me apetece falar nela para moldura de um sentimento que a sua suposição saliente. Para se ser feliz é preciso saber-se que se é feliz. Não há felicidade em dormir sem sonhos, senão somente em se despertar sabendo que se dormiu sem sonhos. A felicidade está fora da felicidade. Não há felicidade senão com conhecimento. Mas o conhecimento da felicidade é infeliz; porque conhecer-se feliz é conhecer-se passando pela felicidade, e tendo, logo já, que deixá-la atrás. Saber é matar, na felicidade como em tudo. Não saber, porém, é não existir.

Só o absoluto de Hegel conseguiu, em páginas, ser duas coisas ao mesmo tempo. O não-ser e o ser não se fundem e confundem nas sensações e razões da vida: excluem-se, por uma síntese às avessas.

Que fazer? Isolar o momento como uma coisa e ser feliz agora, no momento em que se sente a felicidade, sem pensar senão no que se sente, excluindo o mais, excluindo tudo. Enjaular o pensamento na sensação, é esta a minha crença, esta tarde. Amanhã de manhã não será esta, porque amanhã de manhã serei já outro. Que crente serei amanhã? Não sei, porque era preciso estar já lá para o saber. Nem o Deus eterno em que hoje creio o saberá amanhã nem hoje, porque hoje sou eu e amanhã ele talvez já não tenha nunca existido.



[407]

Deus criou-me para criança, e deixou-me sempre criança. Mas por que deixou que a Vida me batesse e me tirasse os brinquedos, e me deixasse só no recreio, amarrotando com mãos tão fracas o bibe azul sujo de lágrimas compridas? Se eu não poderia viver senão acarinhado, por que deitaram fora o meu carinho? Ah, cada vez que vejo nas ruas uma criança a chorar, uma criança exilada dos outros, dói-me mais que a tristeza da criança o horror desprevenido do meu coração exausto. Dôo-me com toda a estatura da vida sentida, e são minhas as mãos que torcem o canto do bibe, são minhas as bocas tortas das lágrimas verdadeiras, é minha a fraqueza, é minha a solidão, e os risos da vida adulta que passa usam-me como luzes de fósforos riscados no estofo sensível  do meu coração.



[408]

Cantava, em uma voz muito suave, uma canção de país longínquo. A música tornava familiares as palavras incógnitas. Parecia o fado para a alma, mas não tinha com ele semelhança alguma.

A canção dizia, pelas palavras veladas e a melodia humana, coisas que estão na alma de todos e que ninguém conhece. Ele cantava numa espécie de sonolência, ignorando com o olhar os ouvintes, num pequeno êxtase de rua.

O povo reunido ouvia-o sem grande motejo visível. A canção era de toda a gente, e as palavras falavam às vezes conosco, segredo oriental de qualquer raça perdida. O ruído da cidade não se ouvia se o ouvíamos, e passavam as carroças tão perto que uma me roçou pelo solto do casaco. Mas senti-a e não a ouvi. Havia uma absorção no canto do desconhecido que fazia bem ao que em nós sonha ou não consegue. Era um caso de rua, e todos reparamos que o polícia virara a esquina lentamente. Aproximou-se com a mesma lentidão. Ficou parado um tempo por trás do rapaz dos guarda-chuvas, como quem vê qualquer coisa. Nesta altura o cantor parou.

Ninguém disse nada. Então o polícia interveio.



[409]

Não sei porquê – noto-o subitamente – estou sozinho no escritório. Já, indefinidamente, o pressentira. Havia em qualquer aspecto da minha consciência de mim uma amplitude de alívio, um respirar mais fundo de pulmões diversos.

É esta uma das mais curiosas sensações que nos pode ser dada pelo acaso dos encontros e das faltas: a de estarmos sós numa casa ordinariamente cheia, ruidosa ou alheia. Temos, de repente, uma sensação de posse absoluta, de domínio fácil e largo, de amplitude – como disse de alívio e sossego.

Que bom estar só largamente! Poder falar alto conosco, passear sem estorvo de vistas, repousar para trás num devaneio sem chamamento! Toda casa se torna um campo, toda sala tem a extensão de uma quinta.

Os ruídos são todos alheios, como se pertencessem a um universo próximo mas independente. Somos, finalmente, reis. A isso todos aspiramos, enfim, e os mais plebeus de nós – quem sabe – com maior vigor que os demais ouro falso. Por um momento somos pensionistas do universo, e vivemos, regulares do soldo dado, sem necessidades nem preocupações.

Ah, mas reconheço, naquele passo na escada, subindo até mim não sei quem, o alguém que vai interromper a minha solidão espairecida. Vai ser invadido pelos bárbaros o meu império implícito. Não é que o passo me diga quem é que vem, nem que me lembre o passo deste ou daquele que eu conheça. Há um mais surdo instinto na alma que me faz saber que é para aqui que vem o que sobe, por enquanto só passos, na escada que subitamente vejo, porque penso nele que a sobe. Sim, é um dos empregados. Pára, a porta ouve-se, entra. Vejo-o todo. E diz-me, ao entrar: “Sozinho, sr. Soares?” E eu respondo: “Sim, já há tempo...” E ele então diz, descascando-se do casaco com o olhar no outro, o velho, no cabide: “Grande maçada a gente estar aqui só, sr. Soares, e de mais a mais...” “Grande maçada, não há dúvida”, respondo eu. “Até dá vontade de dormir”, diz ele, já de casaco roto, e encaminhando-se para a secretária. “E dá”, confirmo, sorridente. Depois, estendendo a mão para a caneta esquecida, reentro, gráfico na saúde anônima da vida normal.



[410]

Sempre que podem, sentam-se defronte do espelho. Falam conosco e namoram-se de olhos a si mesmos. Por vezes, como nos namoros, distraem-se da conversa. Fui-lhes sempre simpático, porque a minha aversão adulta pelo meu aspecto me compeliu sempre a escolher o espelho como coisa para onde virasse as costas. Assim, e eles de instinto o reconheciam tratando-me sempre bem, eu era o rapaz escutador que lhes deixava sempre livres a vaidade e a tribuna.

Em conjunto não eram maus rapazes; particularmente eram melhores e piores. Tinham generosidades e ternuras insuspeitáveis a um tirador de médias, baixezas e sordidezes difíceis de adivinhar por qualquer ente humano normal. Miséria, inveja e ilusão – assim os resumo, e nisso resumiria aquela parte desse ambiente que se infiltra na obra dos homens de valor que alguma vez fizeram dessa estância de ressaca um pousio de enganados. (É, na obra de Fialho, a inveja flagrante, a grosseria reles, a deselegância nauseante...)

Uns têm graça, outros têm só graça, outros ainda não existem. A graça dos cafés divide-se em ditos de espírito sobre os ausentes e ditos de insolência aos presentes. A este gênero de espírito chama-se ordinariamente apenas grosseria. Nada há mais indicador da pobreza da mente do que não saber fazer espírito senão com pessoas.

Passei, vi e, ao contrário deles, venci. Porque a minha vitória consistiu em ver. Reconheci a identidade de todos os aglomerados inferiores: vim encontrar aqui, na casa onde tenho um quarto, a mesma alma sórdida que os cafés me revelaram, salvo, graças aos deuses todos, a noção de vencer em Paris. A dona desta casa ousa Avenidas Novas em alguns dos seus momentos de ilusão, mas do estrangeiro está salva, e o meu coração enternece-se.

Conservo dessa passagem pelo túmulo da vontade a memória de um tédio nauseado e de algumas anedotas com espírito.

Vão a enterrar, e parece que já no caminho do cemitério se esqueceu no café o passado, pois vai calado agora e a posteridade nunca saberá deles, escondidos dela para sempre sob a mole negra  dos pendões ganhados nas suas vitórias de dizer.



[411]

O orgulho é a certeza emotiva da grandeza própria. A vaidade é a certeza emotiva de que os outros vêem em nós, ou nos atribuem, tal grandeza. Os dois sentimentos nem necessariamente se conjugam, nem por natureza se opõem. São diferentes porém conjugáveis.

O orgulho, quando existe só, sem acrescentamento de vaidade, manifesta-se, no seu resultado, como timidez: quem se sente grande, porém não confia em que os outros o reconheçam por tal, receia confrontar a opinião que tem de si mesmo com a opinião que os outros possam ter dele.

A vaidade, quando existe só, sem acrescentamento de orgulho, o que é possível porém raro, manifesta-se, no seu resultado, pela audácia. Quem tem a certeza de que os outros vêem nele valor nada receia deles. Pode haver coragem física sem vaidade; pode haver coragem moral sem vaidade; não pode haver audácia sem vaidade. E por audácia se entende a confiança na iniciativa. A audácia pode ser desacompanhada de coragem, física ou moral, pois estas disposições da índole são de ordem diferente, e com ela incomensuráveis.



[412]

Intervalo doloroso

Nem no orgulho tenho consolação. De quê orgulhar-me se não sou o criador de mim próprio. E mesmo que haja em mim de que envaidecer-me, quanto para me não envaidecer.

Jazo a minha vida. E nem sei fazer com o sonho o gesto de me erguer, tão até à alma estou despido de saber ter um esforço.

Os fazedores de sistemas metafísicos, os de explicações psicológicas são ainda piores no sofrimento. Sistematizar, explicar, o que é senão [...] e construir?

E tudo isso – arranjar, dispor, organizar – o que é senão esforço realizado – e quão desoladoramente isso é vida!

Pessimista – eu não o sou. Ditosos os que conseguem traduzir para universal o seu sofrimento. Eu não sei se o mundo é triste ou mau nem isso me importa, porque o que os outros sofrem me é aborrecido e indiferente. Logo que não chorem ou gemam, o que me irrita e incomoda, nem um encolher de ombros tenho – tão fundo me pesa o meu desdém por eles – para o seu sofrimento.

Mas nem quem crê que a vida seja meio luz meio sombras. Eu não sou pessimista. Não me queixo do horror da vida. Queixo-me do horror da minha. O único fato importante para mim é o fato de eu existir e de eu sofrer e de não poder sequer sonhar-me de todo para fora de me sentir sofrendo. Sonhadores felizes são os pessimistas. Formam o mundo à sua imagem e assim sempre conseguem estar em casa. A mim o que me dói mais é a diferença entre o ruído e a alegria do mundo e a minha tristeza e o meu silêncio aborrecido.

A vida com todas as suas dores e receios e solavancos deve ser boa e alegre, como uma viagem em velha diligência para quem vai acompanhado (e a pode ver).

Nem ao menos posso sentir o meu sofrimento como sinal de Grandeza. Não sei se o é. Mas eu sofro em coisas tão reles, ferem-me coisas tão banais que não ouso insultar com essa hipótese a hipótese de que eu possa ter gênio.

A glória de um poente belo, com a sua beleza entristece-me. Ante ele eu digo sempre: como quem é feliz se deve sentir contente ao ver isto!

E este livro é um gemido. Escrito ele já o Só não é o livro mais triste que há em Portugal.

Ao pé da minha dor todas as outras dores me parecem falsas ou mínimas. São dores de gente feliz ou dores de gente que vive e se queixa. As minhas são de quem se encontra encarcerado da vida, à parte...

Entre mim e a vida...

De modo que tudo o que angustia vejo. E tudo o que alegra não sinto. E reparei que o mal mais se vê que se sente, a alegria mais se sente do que se vê. Porque não pensando, não vendo, certo contentamento adquire-se, como o dos místicos e dos boêmios e dos canalhas. Mas tudo afinal entra [em] casa pela janela da observação e pela porta do pensamento.



[413]

Viver do sonho e para o sonho, desmanchando o Universo e recompondo-o, distraidamente confere mais apego ao nosso momento de sonhar. Fazer isto consciente, muito conscientemente, da inutilidade e de o fazer. Ignorar a vida com todo o corpo, perder-se da realidade com todos os sentidos, abdicar do amor com toda a alma. Encher de areia vã os cântaros da nossa ida à fonte e despejá-los para os tornar a encher e despejar, futilissimamente.

Tecer grinaldas para, logo que acabadas, as desmanchar totalmente e minuciosamente.

Pegar em tintas e misturá-las na paleta sem tela ante nós onde pintar. Mandar vir pedra para burilar sem ter buril nem ser escultor. Fazer de tudo um absurdo e requintar para fúteis todas as nossas estéreis horas. Jogar às escondidas com a nossa consciência de viver.

Ouvir as horas  dizer-nos que existimos com um sorriso deliciado e incrédulo. Ver o Tempo pintar o mundo e achar o quadro não só falso mas vão.

Pensar em frases que se contradigam, falando alto em sons que não são sons e cores que não são cores. Dizer – e compreendê-lo, o que é aliás impossível – que temos consciência de não ter consciência, e que não somos o que somos. Explicar isto tudo por um sentido oculto e paradoxo que as coisas tenham no seu aspecto outro-lado e divino, e não acreditar demasiado na explicação para que não hajamos de a abandonar.

Esculpir em silêncio nulo todos os nossos sonhos de falar. Estagnar em torpor todos os nossos pensamentos de ação.

E sobre tudo isto, como um céu uno e azul, o horror de viver paira  alheadamente.



[414]

Mas as paisagens sonhadas são apenas fumos de paisagens conhecidas e o tédio de as sonhar também é quase tão grande como o tédio de olharmos para o mundo.



[415]

As figuras imaginárias têm mais relevo e verdade que as reais.

O meu mundo imaginário foi sempre o único mundo verdadeiro para mim. Nunca tive amores tão reais, tão cheios de verve, de sangue e de vida como os que tive com figuras que eu próprio criei. Que leais! Tenho saudades deles porque, como os outros, passam...



[416]

Às vezes, nos meus diálogos comigo, nas tardes requintadas da Imaginação, em colóquios cansados em crepúsculos de salões supostos, pergunto-me, naqueles intervalos da conversa em que fico a sós com um interlocutor mais eu do que os outros, por que razão verdadeira não haverá a nossa época científica estendido a sua vontade de compreender até aos assuntos que são artificiais. E uma das perguntas em que com mais languidez me demoro é a por que se não faz, a par da psicologia usual das criaturas humanas e sub-humanas, uma psicologia também – que a deve haver – das figuras artificiais e das criaturas cuja existência se passa apenas nos tapetes e nos quadros. Triste noção tem da realidade quem a limita ao orgânico, e não põe a idéia de uma alma dentro das estatuetas e dos lavores. Onde há forma há alma.

Não são uma ociosidade estas minhas considerações comigo, mas uma elucubração científica como qualquer outra que o seja. Por isso, antes de e sem ter uma resposta, suponho o possível atual e entrego-me, em análises interiores, à visão imaginada de aspectos possíveis deste clesia eratum realizado. Mal nisso penso, logo dentro da visão do meu espírito surgem cientistas curvados sobre estampas, sabendo bem que elas são vidas; microscopistas da tessitura surgem dos tapetes; fisicistas do seu desenho largo e bruxuleante nos contornos; químicos, sim, da idéia das formas e das cores nos quadros; geologistas das camadas estráticas dos camafeus; psicólogos, enfim – e isto mais importa – que uma a uma notam e congregam as sensações que deve sentir uma estatueta, as idéias que devem passar pelo psiquismo estreito de uma figura de quadro ou de vitral, os impulsos loucos, as paixões sem freio, as compaixões e ódios ocasionais e que têm nesses universos especiais de fixidezas e morte nos gestos eternos dos baixos-relevos, nos universos mortos dos figurantes das telas.

Mais do que outras artes, são a literatura e a música propícias às sutilezas de um psicólogo. As figuras de romance são – como todos sabem – tão reais como qualquer de nós. Certos aspectos de sons têm uma alma alada e rápida, mas susceptíveis de psicologia e sociologia. Porque – bom é que os ignorantes o saibam – as sociedades existem dentro das cores, dos sons, das frases, e há regimes e revoluções, reinados, políticas e – há-os em absoluto e sem metafísica – no conjunto instrumental das sinfonias, no todo organizado das novelas, nos metros quadrados de um quadro complexo, onde gozam, sofrem, e misturam as atitudes coloridas de guerreiros, de amorosos ou de simbólicos.

Quando se quebra uma chávena da minha coleção japonesa, eu sonho que mais do que um descuido das mãos de uma criada tenha sido a causa, ou tenham estado os anseios das figuras que habitam as curvas daquela de louça; a resolução tenebrosa de suicídio que as tomou não me causa espanto: serviram-se da criada, como um de nós de um revólver. Saber isto é estar além da ciência moderna, e com que precisão eu sei isto!



[417]

Não conheço prazer como o dos livros, e pouco leio. Os livros são apresentações aos sonhos, e não precisa de apresentações quem, com a facilidade da vida, entre em conversa com eles. Nunca pude ler um livro com entrega a ele; sempre, a cada passo, o comentário da inteligência ou da imaginação me estorvou a seqüência da própria narrativa. No fim de minutos, quem escrevia – era eu, e o que estava escrito não estava em parte alguma.

As minhas leituras prediletas são a repetição de livros banais que dormem comigo à minha cabeceira. Há dois que me não deixam nunca – A Retórica do Padre Figueiredo e as Reflexões sobre a Língua Portuguesa, do Padre Freire. Estes livros, releio-os sempre a bem; e, se é certo que já os li todos muitas vezes, também é certo que a nenhum deles li em seqüência. Devo a esses livros uma disciplina que quase creio impossível em mim – uma regra de escrever objetivado, uma lei da razão de as coisas estarem escritas.

O estilo afetado, claustral, frusto, do Padre Figueiredo é uma disciplina que faz as delícias do meu entendimento. A difusão, quase sempre sem disciplina, do Padre Freire, entretém o meu espírito sem o cansar, e educa-me sem me dar preocupação. São espíritos de eruditos e de sossegados que fazem bem à minha nenhuma disposição para ser como eles, ou como qualquer outra pessoa.

Leio e abandono-me, não à leitura, mas a mim. Leio e adormeço, e é como entre sonhos que sigo a descrição das figuras de retórica do Padre Figueiredo, e por bosques de maravilha que ouço o Padre Freire ensinar que se deve dizer Magdalena, pois Madalena só o diz o vulgo.



[418]

Detesto a leitura. Tenho um tédio antecipado das páginas desconhecidas. Sou capaz de ler só o que já conheço. O meu livro de cabeceira é A Retórica do Padre Figueiredo, onde leio todas as noites pela cada vez mais milésima vez a descrição, em estilo de um português conventual e certo, as figuras de retórica, cujos nomes, mil vezes lidos, não fixei ainda. Mas embala-me a linguagem, e se me faltassem as palavras jesuítas escritas com C dormiria irrequieto.

Devo contudo ao livro do Padre Figueiredo, com o seu exagero de purismo, o relativo escrúpulo que tenho – todo o que posso ter – de escrever a língua em que me registro com a propriedade que [...]

E leio:

(um trecho do P. Figueiredo)

– pomposo, v[azio?], e frio, e isto consola-me de viver.

Ou então

(um trecho sobre figuras) que volta no prefácio.

Não exagero uma polegada verbal: sinto tudo isto.

Como outros podem ler trechos da Bíblia, leio-os desta Retórica. Tenho a vantagem do repouso e da falta de devoção.



[419]

Coisas de nada, naturais da vida, insignificâncias do usual e do reles, poeira que sublinha com um traço apagado e grotesco a sordidez e a vileza da minha vida humana – o Caixa aberto diante dos olhos cuja vida sonha com todos os orientes; a piada inofensiva do chefe do escritório que ofende todo o universo; o avisar o patrão que telefone, que é a amiga, por nome e dona, no meio da meditação do período mais insexual de uma tese estética e mental.

Depois os amigos, bons rapazes, bons rapazes, tão agradável estar falando com eles, almoçar com eles, jantar com eles, e tudo, não sei como, tão sórdido, tão reles, tão pequeno, sempre no armazém de fazendas ainda que na rua, sempre diante do livro caixa ainda que no estrangeiro, sempre com o patrão ainda que no infinito.

Todos têm um chefe de escritório com a piada sempre inoportuna e a alma fora do universo em seu conjunto. Todos têm o patrão e a amiga do patrão, e a chamada ao telefone no momento sempre impróprio em que a tarde admirável desce e as amantes inventam desculpas [?] ou antes arriscam falar contra o amigo que está tomando chá chic, como os outros sabemos.

Mas todos os que sonham, ainda que não sonhem em escritórios da Baixa, nem diante de uma escrita do armazém de fazendas – todos têm um Caixa diante de si – seja a mulher com quem casaram, seja a administração dum futuro que lhes vem por herança, seja o que for, logo que positivamente seja.

Todos nós, que sonhamos e pensamos, somos ajudantes de guarda-livros num Armazém de fazendas, ou de outra qualquer fazenda, em uma Baixa qualquer. Escrituramos e perdemos; somamos e passamos; fechamos o balanço e o saldo invisível é sempre contra nós.

Escrevo sorrindo com as palavras, mas o meu coração está como se se pudesse partir, partir  como as coisas que se quebram, em fragmentos, em cacos, em lixo, que o caixote leva num gesto de por cima dos ombros para o carro eterno de todas as Câmaras Municipais.

E tudo espera, aberto e decorado, o Rei que virá, e já chega, que a poeira do cortejo é uma nova névoa no oriente lento, e as lanças luzem já na distância com uma madrugada sua.



[420]

Marcha fúnebre

Figuras hieráticas, de hierarquias ignoras, se alinham nos corredores a esperar-te – pajens de doçura  loura, jovens de em cintilares dispersos de lâminas nuas, em reflexos irregulares de capacetes e adornos altos, em vislumbres sombrios de ouro fosco e sedas.

Tudo quanto a imaginação adoece, o que de fúnebre dói nas pompas e cansa nas vitórias, o misticismo do nada, a ascese da absoluta negação.

Não os sete palmos de terra fria que se fecham sobre os olhos fechados sob o sol quente e ao lado da erva verde, mas a morte que excede a nossa vida e é uma vida ela mesma – uma morta presença em algum deus, o ignoto deus da religião dos meus Deuses.

O Ganges passa também pela Rua dos Douradores. Todas as épocas estão neste quarto estreito – a mistura a sucessão multicolor das maneiras, as distâncias dos povos, e a vasta variedade das nações.

E ali, em êxtase, numa só rua, sei esperar a Morte entre gládios e ameias.



[421]

A viagem na cabeça

Do meu quarto andar sobre o infinito, no plausível íntimo da tarde que acontece, à janela para o começo das estrelas, meus sonhos vão por acordo de ritmo com a distância exposta para as viagens aos países incógnitos, ou supostos, ou somente impossíveis.



[422]

Surge dos lados do oriente a luz loura do luar de ouro. O rastro que faz no rio largo abre serpentes no mar.



[423]

São cetins prolixos, púrpuras perplexas e os impérios seguiram o seu rumo de morte entre embandeiramentos exóticos de ruas largas e luxúrias de dosséis sobre paragens. Pálios passaram. Havia ruas foscas ou limpas nos decursos das procissões. Faiscavam frio as armas levadas nas dolorosas lentidões das inúteis marchas. Esquecidos os jardins nos subúrbios e as águas nos repuxos mera continuação do deixado, caindo risos longínquos entre lembranças de luzes, não que as estátuas nas áleas falassem, nem que se perdessem, entre amarelos em seqüência, os tons do outono orlando túmulos. As alabardas esquinas para épocas pomposas, verde-negro, roxo-velho e granada o tom das roupagens; praças desertas no meio das esquivanças; e nunca mais por entre canteiros onde se passa passearão as sombras que deixaram os contornos dos aquedutos.

Tanto os tambores, os tambores atroaram a trêmula hora.



[424]

Todos os dias acontecem no mundo coisas que não são explicáveis pelas leis que conhecemos das coisas. Todos os dias, faladas nos momentos, esquecem, e o mesmo mistério que as trouxe as leva, convertendo-se o segredo em esquecimento. Tal é a lei do que tem que ser esquecido porque não pode ser explicado. À luz do sol continua regular o mundo visível. O alheio espreita-nos da sombra.



[425]

O próprio sonho me castiga. Adquiri nele tal lucidez que vejo como real cada coisa que sonho. Era perda, portanto, tudo quanto a valorizava como sonhada.

Sonho-me famoso? Sinto todo o despimento que há na glória, toda a perda da intimidade e do anonimato com que ela é dolorosa para conosco.



[426]

Considerar a nossa maior angústia como um incidente sem importância, não só na vida do universo, mas na da nossa mesma alma, é o princípio da sabedoria. Considerar isto em pleno meio dessa angústia é a sabedoria inteira. No momento em que sofremos, parece que a dor humana é infinita. Mas nem a dor humana é infinita, pois nada há humano de infinito, nem a nossa dor vale mais que ser uma dor que nós temos.

Quantas vezes, sob o peso de um tédio que parece ser loucura, ou de uma angústia que parece passar além dela, paro, hesitante, antes que me revolte, hesito, parando, antes que me divinize. Dor de não saber o que é o mistério do mundo, dor de nos não amarem, dor de serem injustos conosco, dor de pesar a vida sobre nós, sufocando e prendendo, dor de dentes, dor de sapatos apertados – quem pode dizer qual é maior em si mesmo, quanto mais nos outros, ou na generalidade dos que existem?

Para alguns que me falam e me ouvem, sou um insensível. Sou, porém, mais sensível – creio – que a vasta maioria dos homens. O que sou, contudo, é um sensível que se conhece, e que, portanto, conhece a sensibilidade.

Ah, não é verdade que a vida seja dolorosa, ou que seja doloroso pensar na vida. O que é verdade é que a nossa dor só é séria e grave quando a fingimos tal. Se formos naturais, ela passará assim como veio, esbater-se-á assim como cresceu. Tudo é nada, e a nossa dor nele.

Escrevo isto sob a opressão de um tédio que parece não caber em mim, ou precisar de mais que da minha alma para ter onde estar; de uma opressão de todos e de tudo que me estrangula e desvaira; de um sentimento físico da incompreensão alheia que me perturba e esmaga. Mas ergo a cabeça para o céu azul alheio, exponho a face ao vento inconscientemente fresco, baixo as pálpebras depois de ter visto, esqueço a face depois de ter sentido. Não fico melhor, mas fico diferente. Ver-me liberta-me de mim. Quase sorrio, não porque me compreenda, mas porque, tendo-me tornado outro, me deixei de poder compreender. No alto do céu, como um nada visível, uma nuvem pequeníssima é um esquecimento branco do universo inteiro.



[427]

Meus sonhos: como me crio amigos ao sonhar ando com eles. A sua imperfeição outra.

Ser puro, não para ser nobre, ou para ser forte, mas para ser si próprio. Quem dá amor, perde amor.

Abdicar da vida para não abdicar de si próprio.

A mulher – uma boa fonte de sonhos. Nunca lhe toques.

Aprende a desligar as idéias de voluptuosidade e de prazer. Aprende a gozar em tudo, não o que ele é, mas as idéias e os sonhos que provoca. (Porque nada é o que é, e os sonhos sempre são os sonhos.) Para isso precisas não tocar em nada. Se tocares, o teu sonho morrerá, o objeto tocado ocupará a tua sensação.

Ver e ouvir são as únicas coisas nobres que a vida contém. Os outros sentidos são plebeus e carnais. A única aristocracia é nunca tocar. Não se aproximar – eis o que é fidalgo.

Deus é bom mas o diabo também não é mau.

Apesar de tudo, o equilíbrio romântico é mais perfeito que o do século XVII em França.



[428]

Estética da indiferença

Perante cada coisa o que o sonhador deve procurar sentir é a nítida indiferença que ela, no que coisa, lhe causa.

Saber, com um imediato instinto, abstrair de cada objeto ou acontecimento o que ele pode ter de sonhável, deixando morto no Mundo Exterior tudo quanto ele tem de real – eis o que o sábio deve procurar realizar em si próprio.

Nunca sentir sinceramente os seus próprios sentimentos, e elevar o seu pálido triunfo ao ponto de olhar indiferentemente para as suas próprias ambições, ânsias e desejos; passar pelas suas alegrias e angústias como quem passa por quem  não lhe interessa.

O maior domínio de si próprio é a indiferença por si próprio, tendo-se, alma e corpo, por a casa e a quinta onde o Destino quis que passássemos a nossa vida.

Tratar os seus próprios sonhos e íntimos desejos altivamente, en grand seigneue, pondo uma íntima delicadeza em não reparar neles. Ter o pudor de si próprio; perceber que na nossa presença não estamos sós, que somos testemunhas de nós mesmos, e que por isso importa agir perante nós mesmos como perante um estranho, com uma estudada e serena linha exterior, indiferente porque fidalga, e fria porque indiferente.

Para não descermos aos nossos próprios olhos, basta que nos habituemos a não ter nem ambições nem paixões, nem desejos nem esperanças, nem impulsos nem desassossegos. Para conseguir isto lembremo-nos sempre que estamos sempre em presença nossa, que nunca estamos sós, para que possamos estar à vontade. E assim dominaremos o ter paixões e ambições, porque paixões e ambições são desescudarmo-nos; não teremos desejos nem esperanças, porque desejos e esperanças são gestos baixos e deselegantes; nem teremos impulsos e desassossegos porque a precipitação é uma indelicadeza para com os olhos dos outros, e a impaciência é sempre uma grosseria.

O aristocrata é aquele que nunca esquece que nunca está só; por isso as praxes e os protocolos são apanágio das aristocracias. Interiorizemos o aristocrata. Arranquemo-lo aos salões e aos jardins passando-o para a nossa alma  e para a nossa consciência de existirmos. Estejamos sempre diante de nós em protocolos e praxes, em gestos estudados e para-os-outros.

Cada um de nós é uma sociedade inteira, um bairro todos do Mistério, convém que ao menos tornemos elegante e distinta a vida desse bairro, que nas festas das nossas sensações haja requinte e recato, e porque sóbria a cortesia nos banquetes dos nossos pensamentos. Em torno a nós poderão as outras almas erguerem-se os seus bairros sujos e pobres; marquemos nitidamente onde o nosso acaba e começa, e que desde a frontaria dos nossos prédios até às alcovas das nossas timidezas, tudo seja fidalgo e sereno, esculpido numa sobriedade  ou surdina de exibição.

Saber encontrar a cada sensação o modo sereno de ela se realizar. Fazer o amor resumir-se apenas a uma sombra de ser sonho de amor, pálido e trêmulo intervalo entre os cimos de duas pequenas ondas onde o luar bate. Tornar o desejo uma coisa inútil e inofensiva, no como que sorriso delicado da alma a sós consigo própria; fazer dela uma coisa que nunca pense em realizar-se nem em dizer-se. Ao ódio adormecê-lo como a uma serpente prisioneira, e dizer ao medo que dos seus gestos guarde apenas a agonia no olhar, e no olhar da nossa alma, única atitude compatível com ser estética.



[429]

Em todos os lugares da vida, em todas as situações e convivências, eu fui sempre, para todos, um intruso. Pelo menos, fui sempre um estranho. No meio de parentes, como no de conhecidos, fui sempre sentido como alguém de fora. Não digo que o fui, uma só vez sequer, de caso pensado. Mas fui-o sempre por uma atitude espontânea da média dos temperamentos alheios.

Fui sempre, em toda a parte e por todos, tratado com simpatia. A pouquíssimos, creio, terá tão pouca gente erguido a voz, ou franzido a testa, ou falado alto ou de terça. Mas a simpatia, com que sempre me trataram, foi sempre isenta de afeição. Para os mais naturalmente íntimos fui sempre um hóspede, que, por hóspede, é bem tratado, mas sempre com a atenção devida ao estranho, e a falta de afeição merecida pelo intruso.

Não duvido que tudo isto, da atitude dos outros, derive principalmente de qualquer obscura causa intrínseca ao meu próprio temperamento. Sou porventura de uma frieza comunicativa, que involuntariamente obriga os outros a refletirem o meu modo de pouco sentir.

Travo, por índole, rapidamente conhecimentos. Tardam-me pouco as simpatias dos outros. Mas as afeições nunca chegam. Dedicações nunca as conheci. Amarem, foi coisa que sempre me pareceu impossível, como um estranho tratar-me por tu.

Não sei se sofra com isto, se o aceito como um destino indiferente, em que não há nem que sofrer nem que aceitar.

Desejei sempre agradar. Doeu-me sempre que me fossem indiferentes. Órfão da Fortuna, tenho, como todos os órfãos, a necessidade de ser o objeto da afeição de alguém. Passei sempre fome da realização dessa necessidade. Tanto me adaptei a essa fome inevitável que, por vezes, nem sei se sinto a necessidade de comer.

Com isto ou sem isto a vida dói-me.

Os outros têm quem se lhes dedique. Eu nunca tive quem sequer pensasse em se me dedicar. Servem os outros: a mim tratam-me bem.

Reconheço em mim a capacidade de provocar respeito, mas não afeição. Infelizmente não tenho feito nada com que justifique a si próprio esse respeito começado quem o sinta; de modo que nunca chegam a respeitar-me deveras.

Julgo às vezes que gozo sofrer. Mas na verdade eu preferiria outra coisa.

Não tenho qualidades de Chefe, nem de sequaz. Nem sequer as tenho de satisfeito, que são as que valem quando essas outras faltem.

Outros, menos inteligentes que eu, são mais fortes.

Talham melhor a sua vida entre gente; administram mais habilmente a sua inteligência. Tenho todas as qualidades para influir, menos a arte de o fazer, ou a vontade, mesmo, de o desejar.

Se um dia amasse, não seria amado.

Basta eu querer uma coisa para ela morrer. O meu destino, porém, não tem a força de ser mortal para qualquer coisa. Tem a fraqueza de ser mortal nas coisas para mim.



[430]

Tendo visto com que lucidez e coerência lógica certos loucos justificam, a si próprios e aos outros, as suas idéias delirantes, perdi para sempre a segura certeza da lucidez da minha lucidez.



[431]

Uma das grandes tragédias da minha vida – porém daquelas tragédias que se passam na sombra e no subterfúgio – é a de não poder sentir qualquer coisa naturalmente. Sou capaz de amar e odiar, como todos, de, como todos, recear e entusiasmar-me; mas nem meu amor, nem meu ódio, nem meu receio, nem meu entusiasmo, são exatamente aquelas mesmas coisas que são. Ou lhes falta qualquer elemento, ou se lhes acrescenta algum. O certo é que são qualquer outra coisa, e o que sinto não está certo com a vida.

Nos espíritos a que chamam calculistas – e a palavra é muito bem delineada –, os sentimentos sofrem a delimitação do cálculo, do escrúpulo egoísta, e parecem outros. Nos espíritos a que chamam propriamente escrupulosos, a mesma deslocação dos instintos naturais se nota. Em mim nota-se igual perturbação da certeza do sentimento, mas nem sou calculista nem sou escrupuloso. Não tenho desculpa para sentir mal. Por instinto desnaturo os instintos. Sem querer, quero erradamente.



[432]

Escravo do temperamento como das circunstâncias, insultado pela indiferença dos homens como pela sua afeição a quem supõem que sou – os insultos humanos do Destino.



[433]

Passei entre eles estrangeiro porém nenhum viu que eu o era. Vivi entre eles espião, e ninguém, nem eu, suspeitou que eu o fosse. Todos me tinham por parente: nenhum sabia que me haviam trocado à nascença. Assim fui igual aos outros sem semelhança, irmão de todos sem ser da família.

Vinha de prodigiosas terras, de paisagens melhores que a vida, mas das terras nunca falei, senão comigo, e das paisagens, vistas se sonhava, nunca lhes dei notícia. Meus passos eram como os deles nos soalhos e nas lajes, mas o meu coração estava longe, ainda que batesse perto, senhor falso de um corpo desterrado e estranho.

Ninguém me conheceu sob a máscara da igualha, nem soube nunca que era máscara, porque ninguém sabia que neste mundo há mascarados. Ninguém supôs que ao pé de mim estivesse sempre outro, que afinal era eu. Julgaram-me sempre idêntico a mim.

Abrigaram-me as suas casas, as suas mãos apertaram a minha, viram-me passar na rua como se eu lá estivesse; mas quem sou não esteve nunca naquelas salas, quem vivo não tem mãos que outros apertem, quem me conheço não tem ruas por onde passe, a não ser que sejam todas as ruas, nem que nelas o veja, a não ser que ele mesmo seja todos os outros.

Vivemos todos longínquos e anônimos; disfarçados, sofremos desconhecidos. A uns, porém, esta distância entre um ser e ele mesmo nunca se revela; para outros é de vez em quando iluminada, de horror ou de mágoa, por um relâmpago sem limites; mas para outros ainda é essa a dolorosa constância e quotidianidade da vida.

Saber bem quem somos não é conosco, que o que pensamos ou sentimos é sempre uma tradução, que o que queremos o não quisemos, nem porventura alguém o quis – saber tudo isto a cada minuto, sentir tudo isto em cada sentimento, não será isto ser estrangeiro na própria alma, exilado nas próprias sensações?

Mas a máscara, que estive fitando inerte, que falava à esquina com um homem sem máscara nesta noite de fim de Carnaval, por fim estendeu a mão e se despediu rindo. O homem natural seguiu à esquerda, pela travessa a cuja esquina estava. A máscara – dominó sem graça – caminhou em frente, afastando-se entre sombras e acasos de luzes, numa despedida definitiva e alheia ao que eu estava pensando. Só então reparei que havia mais na rua que os candeeiros acesos, e, a turvar onde eles não estavam, um lugar vago, oculto, mudo, cheio de nada como a vida...



[434]

Luares

... molhadamente sujo de castanho morto

... nos resvalamentos nítidos dos telhados sobrepostos, branco cinzento, molhadamente sujo de castanho morto.



[435]

... e desnivela-se em conglomerados de sombra, recortados de um lado a branco, com diferenças azuladas de madrepérola fria.



[436]

(chuva)

E por fim, sobre a escuridão dos telhados lustrosos, a luz fria da manhã tépida raia como um suplício do Apocalipse. É outra vez a noite imensa da claridade que aumenta. É outra vez o horror de sempre – o dia, a vida, a utilidade fictícia, a atividade sem remédio. É outra vez a minha personalidade física, visível, social, transmissível por palavras que não dizem nada, usável pelos gestos dos outros e pela consciência alheia. Sou eu outra vez, tal qual não sou. Com o princípio da luz de trevas que enche de dúvidas cinzentas as frinchas das portas das janelas – tão longe de herméticas, meu Deus! –, vou sentindo que não poderei guardar mais o meu refúgio de estar deitado, de não estar dormindo mas de o poder estar, de ir sonhando, sem saber que há verdade nem realidade, entre um calor fresco de roupas limpas e um desconhecimento, salvo de conforto, da existência do meu corpo. Vou sentindo fugir-me a inconsciência feliz com que estou gozando da minha consciência, o modorrar de animal com que espreito, entre pálpebras de gato ao sol, os movimentos da lógica da minha imaginação desprendida. Vou sentindo sumirem-se-me os privilégios da penumbra, e os rios lentos sob as árvores das pestanas entrevistas, e o sussurro das cascatas perdidas entre o som do sangue lento nos ouvidos e o vago perdurar de chuva. Vou-me perdendo até vivo.

Não sei se durmo, ou se só sinto que durmo. Não sonho o intervalo certo, mas reparo, como se começasse a despertar de um sono não dormido, os primeiros ruídos da vida da cidade, a subir, como uma cheia, do lugar  vago, lá em baixo, onde ficam as ruas que Deus fez. São sons alegres, coados pela tristeza da chuva que há, ou, talvez, que houve – pois a não ouço agora –, só o cinzento excessivo da luz frinchada até mais longe que me dá, nas sombras de uma claridade frouxa, insuficiente para a altura da madrugada, que não sei qual é... São sons alegres e dispersos e doem-me no coração como se me viessem, com eles, chamar a um exame ou a uma execução. Cada dia, se o ouço raiar da cama onde ignoro, me parece o dia de um grande acontecimento meu que não terei coragem para enfrentar. Cada dia, se o sinto erguer-se do leito das sombras, com um cair de roupas da cama pelas ruas e pelas vielas, vem chamar-me a um tribunal. Vou ser julgado em cada hoje que há. E o condenado perene que há em mim agarra-se ao leito como à mãe que perdeu, e acaricia o travesseiro como se a ama o defendesse de gentes.

A sesta feliz do bicho grande à sombra de árvores, o cansaço fresco do esfarrapado entre a erva alta, o torpor do negro na tarde morna e longínqua, a delícia do bocejo que pesa nos olhos frouxos tudo que acaricia o esquecimento, fazendo sono, o sossego do repouso na cabeça, encostando, pé ante pé, as portas da janela na alma, o afago anônimo de dormir.

Dormir, ser longínquo sem o saber, estar distante, esquecer com o próprio corpo; ter a liberdade de ser inconsciente, um refúgio de lago esquecido, estagnado entre frondes árvores, nos vastos afastamentos das florestas.

Um nada com respiração por fora, uma morte leve de que se desperta com saudade e frescura, um ceder dos tecidos da alma à massagem do esquecimento.

Ah, e de novo, como o protesto reatado de quem se não convenceu, ouço o alarido brusco da chuva chapinhar no universo aclarado. Sinto um frio até aos ossos supostos, como se tivesse medo. E agachado, nulo, humano a sós comigo na pouca treva que ainda me resta, choro. Sim, choro, choro de solidão e de vida, e a minha mágoa fútil como um carro sem rodas jaz à beira da realidade entre os estercos do abandono. Choro de tudo, entre perda do regaço, a morte da mão que me davam, os braços que não soube como me cingissem, o ombro que nunca poderia ter... E o dia que raia definitivamente, a mágoa que raia em mim como a verdade crua do dia, o que sonhei, o que pensei, o que se esqueceu em mim – tudo isso, numa amálgama de sombras, de ficções e de remorsos, se mistura no rastro em que vão os mundos e cai entre as coisas da vida como o esqueleto de um cacho de uvas, comido à esquina pelos garotos que o roubaram.

O ruído do dia humano aumenta de repente, como um som de sineta de chamada. Estala adentro da casa o fecho suave da primeira porta que se abre para viverem. Ouço chinelos num corredor absurdo que conduz até meu coração. E num gesto brusco, como quem enfim se matasse, arrojo de sobre o corpo duro as roupas profundas da cama que me abriga. Despertei. O som da chuva esbate-se para mais alto no exterior indefinido. Sinto-me mais feliz. Cumpri uma coisa que ignoro. Ergo-me, vou à janela, abro as portas com uma decisão de muita coragem. Luze um dia de chuva clara que me afoga os olhos em luz baça. Abro as próprias janelas de vidro. O ar fresco umedece-me a pele quente. Chove, sim, mas ainda que seja o mesmo é afinal tão menos! Quero refrescar-me, viver, e inclino o pescoço à vida, como a uma canga imensa.



[437]

Há sossegos do campo na cidade. Há momentos, sobretudo nos meios-dias de estio, em que, nesta Lisboa luminosa, o campo, como um vento, nos invade. E aqui mesmo, na Rua dos Douradores, temos o bom sono.

Que bom à alma ver calar, sob um sol alto quieto, estas carroças com palha, estes caixotes por fazer, estes transeuntes lentos, de aldeia transferida! Eu mesmo, olhando-os da janela do escritório, onde estou só, me transmuto: estou numa vila quieta da província, estagno numa aldeola incógnita, e porque me sinto outro sou feliz.

Bem sei: se ergo os olhos, está diante de mim a linha sórdida da casaria, as janelas por lavar de todos os escritórios da Baixa, as janelas sem sentido dos andares mais altos onde ainda se mora, e, ao alto, no angular das trapeiras, a roupa de sempre, ao sol entre vasos e plantas. Sei isto, mas é tão suave a luz que doura tudo isto, tão sem sentido o ar calmo que me envolve, que não tenho razão sequer visual para abdicar da minha aldeia postiça, da minha vila de província onde o comércio é um sossego.

Bem sei, bem sei... Verdade seja que é a hora de almoço, ou de repouso, ou de intervalo. Tudo vai bem pela superfície da vida. Eu mesmo durmo, ainda que me debruce da varanda, como se fosse a amurada de um barco sobre uma paisagem nova. Eu mesmo nem cismo, como se estivesse na província. E, subitamente, outra coisa me surge, me envolve, me comanda: vejo por detrás do meio-dia da vila toda a vida em tudo da vila; vejo a grande felicidade estúpida da vida doméstica, a grande felicidade estúpida da vida nos campos, a grande felicidade estúpida do sossego na sordidez. Vejo, porque vejo. Mas não vi e desperto. Olho em roda, sorrindo, e, antes de mais nada, sacudo dos cotovelos do fato, infelizmente escuro, todo o pó do apoio da varanda, que ninguém limpou, ignorando que teria um dia, um momento que fosse, que ser a amurada sem pó possível de um barco singrando num turismo infinito.



[438]

Um azul esbranquiçado de verde noturno punha em recorte castanho negro, vagamente aureolado de cinzento amarelecido, a irregularidade fria dos edifícios que estavam de encontro ao horizonte do estio.

Dominamos outrora o mar físico, criando a civilização universal; dominaremos agora o mar psíquico, a emoção, a mãe temperamento, criando a civilização intelectual.



[439]

... a acuidade dolorosa das minhas sensações, ainda das que sejam de alegria; a alegria da acuidade das minhas sensações, ainda que sejam de tristeza.

Escrevo num domingo, manhã alta, num dia amplo de luz suave, em que, por sobre os telhados da cidade interrompida, o azul do céu sempre inédito fecha no esquecimento a existência misteriosa de astros...

É domingo em mim também...

Também meu coração vai a uma igreja que não sabe onde é, e vai vestido de um traje de veludo infante, com a cara corada das primeiras impressões a sorrir sem olhos tristes por cima do colarinho muito grande.



[440]

O céu do estio prolongado todos os dias despertava de azul verde baço, e breve se tornava de azul acinzentado de branco mudo. No ocidente, porém, era da cor que lhe costumam chamar, a ele todo.

Dizer a verdade, encontrar o que se espera, negar a ilusão de tudo – quantos o usam na subsidência e no declive, e como os nomes ilustres mancham de maiúsculas, como as de terras geográficas, as agudezas das páginas sóbrias e lidas!

Cosmorama de acontecer amanhã o que não poderia ter sucedido nunca! Lápis-lazúli das emoções descontínuas! Quantas memórias alberga uma suposição factícia, lembras-te, visão somente? E num delírio intersticiado de certezas, leve, breve, suave, o murmúrio da água de todos os parques nasce, emoção, do fundo da minha consciência de mim. Sem ninguém os bancos antigos, e as áleas alastram onde eles estão a sua melancolia de arruamentos vazios.

Noite em Heliópolis! Noite em Heliópolis! Noite em Heliópolis! Quem me  dirá as palavras inúteis, me compensará a sangue e indecisão?



[441]

Floresce alto na solidão noturna um candeeiro incógnito por detrás de uma janela. Tudo mais na cidade que vejo está escuro, salvo onde reflexos frouxos da luz das ruas sobem vagamente e fazem aqui e ali pairar um luar inverso, muito pálido. Na negrura da noite, a própria casaria destaca pouco, entre si, as suas diversas cores, ou tons de cores: só diferenças vagas, dir-se-ia abstratas, irregularizam o conjunto atropelado.

Um fio invisível me liga ao dono anônimo do candeeiro. Não é a comum circunstância de estarmos ambos acordados: não há nisso uma reciprocidade possível, pois, estando eu à janela no escuro, ele nunca poderia ver-me. E outra coisa, minha só, que se prende um pouco com a sensação de isolamento, que participa da noite e do silêncio, que escolhe aquele candeeiro para ponto de apoio porque é o único ponto de apoio que há. Parece que é por ele estar aceso que a noite é tão escura. Parece que é por eu estar desperto, sonhando na treva, que ele está alumiando.

Tudo que existe existe talvez porque outra coisa existe. Nada é, tudo coexiste: talvez assim seja certo. Sinto que eu não existiria, nesta hora – que não existiria, ao menos, do modo em que estou existindo, com esta consciência presente de mim, que por ser consciência e presente é neste momento inteiramente eu –, se aquele candeeiro não estivesse aceso além, algures, farol não indicando nada num falso privilégio de altura. Sinto isto porque não sinto nada. Penso isto porque isto é nada. Nada, nada, parte da noite e do silêncio e do que com eles eu sou de nulo, de negativo, de intervalar, espaço entre mim e mim, coisa esquecimento de qualquer deus...



[442]

Releio, em uma destas sonolências sem sono, em que nos entretemos inteligentemente sem a inteligência, algumas das páginas que formarão, todas juntas, o meu livro de impressões sem nexo. E delas me sobe, como um cheiro de coisa conhecida, uma impressão deserta de monotonia. Sinto que, ainda ao dizer que sou sempre diferente, disse sempre a mesma coisa; que sou mais análogo a mim mesmo do que quereria confessar; que, em fecho de contas, nem tive a alegria de ganhar nem a emoção de perder. Sou uma ausência de saldo de mim mesmo, de um equilíbrio involuntário que me desola e enfraquece.

Tudo, quanto escrevi, é pardo. Dir-se-ia que a minha vida, ainda a mental, era um dia de chuva lenta, em que tudo é desacontecimento e penumbra, privilégio vazio e razão esquecida. Desolo-me a seda rota. Desconheço-me a luz e tédio.

Meu esforço humilde, de sequer dizer quem sou, de registrar, como uma máquina de nervos, as impressões mínimas da minha vida subjetiva e aguda, tudo isso se me esvaziou como um balde em que esbarrassem, e se molhou pela terra como a água de tudo. Fabriquei-me a tintas falsas, resultei a império de trapeira. Meu coração, de quem fiei os grandes acontecimentos da prosa vivida, parece-me hoje, escrito na distância destas páginas relidas com outra alma, uma bomba de quintal de província, instalada por instinto e manobrada por serviço. Naufraguei sem tormenta num mar onde se pode estar de pé.

E pergunto, ao que me resta de consciente nesta série confusa de intervalos entre coisas que não existem, de que me serviu encher tantas páginas de frases em que acreditei como minhas, de emoções que senti como pensadas, de bandeiras e pendões de exércitos que são, afinal, papéis colados com cuspo pela filha do mendigo debaixo dos beirais.

Pergunto ao que me resta de mim a que vêm estas páginas inúteis, consagradas ao lixo e ao desvio, perdidas antes de ser entre os papéis rasgados do Destino.

Pergunto, e prossigo. Escrevo a pergunta, embrulho-a em novas frases, desmeado-a de novas emoções. E amanhã tornarei a escrever, na seqüência do meu livro estúpido, as impressões diárias do meu desconvencimento com frio.

Sigam, tais como são. Jogado o dominó, e ganho o jogo, ou perdido, as pedras viram-se para baixo e o jogo findo é negro.



[443]

Que de Infernos e Purgatórios e Paraísos tenho em mim – e quem me conhece um gesto discordando da vida.., a mim tão calmo e tão plácido?

Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo.



[444]

Tudo se me tornou insuportável, exceto a vida. O escritório, a casa, as ruas – o contrário até, se o tivesse – me sobrebasta e oprime; só o conjunto me alivia. Sim, qualquer coisa de tudo isto é bastante para me consolar. Um raio de sol que entre eternamente no escritório morto; um pregão atirado que sobe rápido até à janela do meu quarto; a existência de gente; o haver clima e mudança de tempo, a espantosa objetividade do mundo...

O raio de sol entrou de repente para mim, que de repente o vi... Era, porém, um risco de luz muito agudo, quase sem cor a cortar à faca nua o chão negro e madeirento, a avivar, à roda de onde passava, os pregos velhos e os sulcos entre as tábuas, negras pautas do não-branco.

Minutos seguidos segui o efeito insensível da penetração do sol no escritório quieto... Ocupações do cárcere! Só os enclausurados vêem assim o sol mover-se, como quem olha para formigas.



[445]

Dizem que o tédio é uma doença de inertes, ou que ataca só os que nada têm que fazer. Essa moléstia da alma é porém mais sutil: ataca os que têm disposição para ela, e poupa menos os que trabalham, ou fingem que trabalham (o que para o caso é o mesmo) que os inertes deveras.

Nada há pior que o contraste entre o esplendor natural da vida interna, com as suas Índias naturais e os seus países incógnitos, e a sordidez, ainda que em verdade não seja sórdida, de quotidianidade da vida. O tédio pesa mais quando não tem a desculpa da inércia. O tédio dos grandes esforçados é o pior de todos.

Não é o tédio a doença do aborrecimento de nada ter que fazer, mas a doença maior de se sentir que não vale a pena fazer nada. E, sendo assim, quanto mais há que fazer, mais tédio há que sentir.

Quantas vezes ergo do livro onde estou escrevendo e que trabalho a cabeça vazia de todo o mundo! Mais me valera estar inerte, sem fazer nada, sem ter que fazer nada, porque esse tédio, ainda que real, ao menos o gozaria. No meu tédio presente não há repouso, nem nobreza, nem bem-estar em que haja mal-estar: há um apagamento enorme de todos os gestos feitos, não um cansaço virtual dos gestos por não fazer.



[446]

Omar Khayyam

O tédio de Khayyam não é o tédio de quem não sabe o que faça, porque na verdade nada pode ou sabe fazer. Esse é o tédio dos que nasceram mortos, e dos que legitimamente se orientam para a morfina ou a cocaína. É mais profundo e mais nobre o tédio do sábio persa. É o tédio de quem pensou claramente e viu que tudo era obscuro, de quem mediu todas as religiões e todas as filosofias e depois disse, como Salomão: “Vi que tudo era vaidade e aflições de ânimo”, ou como, ao despedir-se do poder e do mundo, outro rei, que era imperador, nele, Septímio Severo: “Omnia fui, nihil...” “Fui tudo; nada vale a pena”.

A vida, disse Tardei, é a busca do impossível através do inútil; assim diria, se o houvesse dito, Omar Khayyam.

Daí a insistência do persa no uso do vinho. Bebe! Bebe! É toda a sua filosofia prática. Não é o beber da alegria, que bebe porque mais se alegre, porque mais seja ela mesma. Não é o beber do desespero, que bebe para esquecer, para ser menos ele mesmo. Ao vinho junta a alegria, a ação e o amor; e há que reparar que não há em Khayyam nota alguma de energia, nenhuma frase de amor. Aquela Sàki, cuja figura grácil entrevista surge (mas surge pouco) nos rubaiyat, não é senão a “rapariga que serve o vinho”. O poeta é grato à sua esbelteza como o fora à esbelteza da ânfora, onde o vinho se contivesse.

A alegria fala, do vinho, como o Deão Aldrich :

A filosofia prática de Khayyam reduz-se pois a um epicurismo suave, esbatido até ao mínimo do desejo de prazer. Basta-lhe ver rosas e beber vinho.

Uma brisa leve, uma conversa sem intuito nem propósito, um púcaro de vinho, flores, em isso, e em não mais do que isso, põe o sábio persa o seu desejo máximo. O amor agita e cansa, a ação dispersa e falha, ninguém sabe saber e pensar embacia tudo. Mais vale pois cessar em nós de desejar ou de esperar, de ter a pretensão fútil de explicar o mundo, ou o propósito estulto de o emendar ou governar. Tudo é nada, ou, como se diz na Antologia Grega, “tudo vem da sem-razão”, e é um grego, e portanto um racional, que o diz.



[447]

Quedar-nos-emos indiferentes à verdade ou mentira de todas as religiões, de todas as filosofias, de todas as hipóteses inutilmente verificáveis a que chamamos ciências. Tão-pouco nos preocupará o destino da chamada humanidade, ou o que sofra ou não sofra em seu conjunto. Caridade, sim, para com o “próximo” como no Evangelho se diz, e não com o homem, de que nele se não fala. E todos, até certo ponto, assim somos: que nos pesa, ao melhor de nós, um massacre na China? Mais nos dói, ao que de nós mais imagine, a bofetada injusta que vimos dar na rua a uma criança.

Caridade para com todos, intimidade com nenhum. Assim interpreta FitzGerald, em um passo de uma sua nota, qualquer coisa da ética de Khayyam.

Recomenda o Evangelho amor ao próximo: não diz amor ao homem ou à humanidade, de que verdadeiramente ninguém pode curar.

Perguntar-se-á talvez se faço minha a filosofia de Khayyam, tal como aqui, creio que com justeza, a escrevi de novo e interpreto. Responderei que não sei. Há dias em que essa me parece a melhor, e até a única, de todas as filosofias práticas. Há outros dias em que me parece nula, morta, inútil, como um copo vazio. Não me conheço, porque penso. Não sei pois o que verdadeiramente penso. Não seria assim se tivesse fé; mas também não seria assim se estivesse louco. Na verdade, se fosse outro seria outro.

Para além destas coisas do mundo profano, há, é certo, as lições secretas das ordens iniciáticas, os mistérios declarados, quando secretos, ou velados, quando os figuram ritos públicos. Há o que está oculto ou meio oculto nos grandes ritos católicos, seja no Ritual de Maria na Igreja Romana, seja a Cerimônia do Espírito na Franco-Maçonaria. Mas quem nos diz, afinal, que o iniciado, quando íncola dos penetrais dos mistérios, não é senão avara presa da nossa nova face da ilusão? Que é a certeza que tem, se mais firme que ele a tem um louco no que lhe é loucura? Dizia Spencer que o que sabemos é uma esfera que, quanto mais se alarga, em tantos mais pontos tem contato com o que não sabemos. Nem me esquecem, neste capítulo do que as iniciações podem ministrar, as palavras terríveis de um Mestre da Magia. “Já vi Ísis” diz, “já toquei em Ísis: não sei contudo se ela existe”.



[448]

Omar Khayyam

Ornar tinha uma personalidade; eu, feliz ou infelizmente, não tenho nenhuma. Do que sou numa hora na hora seguinte me separo; do que fui num dia no dia seguinte me esqueci. Quem, como Omar, é quem é, vive num só mundo, que é o externo; quem, como eu, não é quem é, vive não só no mundo externo, mas num sucessivo e diverso mundo interno. A sua filosofia, ainda que queira ser a mesma que a de Ornar, forçosamente o não poderá ser. Assim, sem que deveras o queira, tenho em mim, como se fossem almas, as filosofias que critique; Ornar podia rejeitar a todas, pois lhe eram externas, não as posso eu rejeitar, porque são eu.



[449]

Há mágoas íntimas que não sabemos distinguir, por o que contêm de sutil e de infiltrado, se são da alma ou do corpo, se são o mal-estar de se estar sentindo a futilidade da vida, se são a má disposição que vem de qualquer abismo orgânico – estômago, fígado ou cérebro. Quantas vezes se me tolda a consciência vulgar de mim mesmo, num sedimento torvo de estagnação inquieta! Quantas vezes me dói existir, numa náusea a tal ponto incerta que não sei distinguir se é um tédio, se um prenúncio de vómito! Quantas vezes...

Minha alma está hoje triste até ao corpo. Todo eu me dôo, memória, olhos e braços. Há como que um reumatismo em tudo quanto sou. Não me influi no ser a clareza límpida do dia, céu de grande azul puro, maré alta parada de luz difusa. Não me abranda nada o leve sopro fresco, outonal como se o estio não esquecesse, com que o ar tem personalidade. Nada me é nada. Estou triste, mas não com uma tristeza definida, nem sequer com uma tristeza indefinida. Estou triste ali fora, na rua juncada de caixotes.

Estas expressões não traduzem exatamente o que sinto porque sem dúvida nada pode traduzir exatamente o que alguém sente. Mas de algum modo tento dar a impressão do que sinto, mistura de várias espécies de eu e da rua alheia, que, porque a vejo, também, de um modo íntimo que não sei analisar, me pertence, faz parte de mim.

Quisera viver diverso em países distantes. Quisera morrer outro entre bandeiras desconhecidas. Quisera ser aclamado imperador em outras eras, melhores hoje porque não são de hoje, vistas em vislumbre e colorido, inéditas a esfinges. Quisera tudo quanto pode tornar ridículo o que sou, e porque torna ridículo o que sou. Quisera, quisera... Mas há sempre o sol quando o sol brilha e a noite quando a noite chega. Há sempre a mágoa quando a mágoa nos dói e o sonho quando o sonho nos embala. Há sempre o que há, e nunca o que deveria haver, não por ser melhor ou por ser pior, mas por ser outro. Há sempre...

Na rua cheia de caixotes vão os carregadores limpando a rua. Um a um, com risos e ditos, vão pondo os caixotes nas carroças. Do alto da minha janela do escritório eu os vou vendo, com olhos tardos em que as pálpebras estão dormindo. E qualquer coisa de sutil, de incompreensível, liga o que sinto aos fretes que estou vendo fazer, qualquer sensação desconhecida faz caixote de todo este meu tédio, ou angústia, ou náusea, e o ergue, em ombros de quem chalaceia alto, para uma carroça que não está aqui. E a luz do dia, serena como sempre, luze obliquamente, porque a rua é estreita, sobre onde estão erguendo os caixotes – não sobre os caixotes, que estão na sombra, mas sobre o ângulo lá ao fim onde os moços de fretes estão a fazer não fazer nada, indeterminadamente.



[450]

Como uma esperança negra, qualquer coisa de mais antecipador pairou: a mesma chuva pareceu intimidar-se; um negrume surdo calou-se sobre o ambiente. E súbito, como um grito, um formidável dia estilhaçou-se. Uma luz de inferno frio  visitara o conteúdo de tudo, e enchera os cérebros e os recantos. Tudo pasmou. Um peso caiu  de tudo porque o golpe passara. A chuva triste  era alegre com o seu ruído bruto e humilde. Sem querer, o coração sentia-se e pensar era um estonteamento. Uma vaga religião formava-se no escritório. Ninguém estava quem era, e o patrão Vasques apareceu à porta do gabinete para pensar em dizer qualquer coisa. O Moreira sorriu, tendo ainda nos arredores da cara o amarelo do medo súbito. E o seu sorriso dizia que sem dúvida o trovão seguinte deveria ser já mais longe. Uma carroça rápida estorvou alto os ruídos da rua. Involuntariamente o telefone tiritou, O patrão Vasques, em vez de retroceder para o escritório, avançou para o aparelho da sala grande. Houve um repouso e um silêncio e a chuva caía como um pesadelo, O patrão Vasques esqueceu-se do telefone, que não tocara mais. O moço mexeu-se, ao fundo da casa, como uma coisa incômoda.

Uma grande alegria, cheia de repouso e de livração, desconcertou-nos a todos. Trabalhamos meio tontos, agradáveis, sociáveis com uma profusão natural. O moço, sem que ninguém lho dissesse, abriu amplas as janelas. Um cheiro a qualquer coisa fresca entrou, com o ar de água, pela grande sala adentro. A chuva, já leve, caía humilde. Os sons da rua, que continuavam os mesmos, eram diferentes. Ouvia-se a voz dos carroceiros, e eram realmente gente. Nitidamente, na rua ao lado, as campainhas dos elétricos tinham também uma socialidade conosco. Uma gargalhada de criança deserta fez de canário na atmosfera limpa. A chuva leve decresceu.

Eram seis horas. Fechava-se o escritório. O patrão Vasques disse, do guarda-vento entreaberto, “Podem sair”, e disse-o como uma bênção comercial. Levantei-me logo, fechei o livro e guardei-o. Pus a caneta visivelmente sobre a depressão do tinteiro, e, avançando para o Moreira, disse-lhe um “até amanhã” cheio de esperança, e apertei-lhe a mão como depois de um grande favor.

[451]

Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.

Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.

“Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl, te levará até ao fim do mundo.” Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito do mundo. É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para quê viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Pólos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e gênero das minhas sensações?

A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.



[452]

O único viajante com verdadeira alma que conheci era um garoto de escritório que havia numa outra casa, onde em tempos fui empregado. Este rapazito colecionava folhetos de propaganda de cidades, países e companhias de transportes; tinha mapas – uns arrancados de periódicos, outros que pedia aqui e ali –; tinha, recortadas de jornais e revistas, ilustrações de paisagens, gravuras de costumes exóticos, retratos de barcos e navios. Ia às agências de turismo, em nome de um escritório hipotético, ou talvez em nome de qualquer escritório existente, possivelmente o próprio onde estava, e pedia folhetos sobre viagens para a Itália, folhetos de viagens para a Índia, folhetos dando as ligações entre Portugal e a Austrália.

Não só era o maior viajante, porque o mais verdadeiro, que tenho conhecido: era também uma das pessoas mais felizes que me tem sido dado encontrar. Tenho pena de não saber o que é feito dele, ou, na verdade, suponho somente que deveria ter pena; na realidade não a tenho, pois hoje, que passaram dez anos, ou mais, sobre o breve tempo em que o conheci, deve ser homem, estúpido, cumpridor dos seus deveres, casado talvez, sustentáculo social de qualquer – morto, enfim, em sua mesma vida. É até capaz de ter viajado com o corpo, ele que tão bem viajava com a alma.

Recordo-me de repente: ele sabia exatamente por que vias-férreas se ia de Paris a Bucareste, por que vias-férreas se percorria a Inglaterra, e, através das pronúncias erradas dos nomes estranhos, havia a certeza aureolada da sua grandeza de alma. Hoje, sim, deve ter existido para morto, mas talvez um dia, em velho, se lembre como é não só melhor, senão mais verdadeiro, o sonhar com Bordéus do que desembarcar em Bordéus.

E, daí, talvez isto tudo tivesse outra explicação qualquer, e ele estivesse somente imitando alguém. Ou... sim, julgo às vezes, considerando a diferença hedionda entre a inteligência das crianças e a estupidez dos adultos, que somos acompanhados na infância por um espírito da guarda, que nos empresta a própria inteligência astral, e que depois, talvez com pena, mas por uma lei alta, nos abandona, como as mães animais às crias crescidas, ao cevado que é o nosso destino.



[453]

Do terraço deste café olho tremulamente para a vida. Pouco vejo dela – a espalhada – nesta sua concentração neste largo nítido e meu. Um marasmo, como um começo de bebedeira, elucida-me a alma de coisas. Decorre fora de mim, nos passos dos que passam e na fúria regulada de movimentos, a vida evidente e unânime. Nesta hora dos sentidos estagnarem-me e tudo me parecer outra coisa – as minhas sensações um erro confuso e lúcido, abro asas mas não me movo, como um condor suposto.

Homem de ideais que sou, quem sabe se a minha maior aspiração não é realmente não passar de ocupar este lugar a esta mesa deste café?

Tudo é vão, como mexer em cinzas, vago como o momento em que ainda não é antemanhã.

E a luz bate tão serenamente e perfeitamente nas coisas, doura-as tão de realidade sorridente e triste! Todo o mistério do mundo desce até ante meus olhos se esculpir em banalidade e rua.

Ah, como as coisas quotidianas roçam mistérios por nós! Como à superfície que a luz toca, desta vida complexa de humanos, a Hora, sorriso incerto, sobe aos lábios do Mistério! Que moderno que tudo isto soa! E, no fundo tão antigo, tão oculto, tão tendo outro sentido que aquele que luze em tudo isto!



[454]

A leitura dos jornais, sempre penosa do ponto de ver estético, é-o freqüentemente também do moral, ainda para quem tenha poucas preocupações morais.

As guerras e as revoluções – há sempre uma ou outra em curso chegam, na leitura dos seus efeitos, a causar não horror mas tédio. Não é a crueldade de todos aqueles mortos e feridos, o sacrifício de todos os que morrem batendo-se, ou são mortos sem que se batam, que pesa duramente na alma: e a estupidez que sacrifica vidas e haveres a qualquer coisa inevitavelmente inútil. Todos os ideais e todas as ambições são um desvairo de comadres homens. Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança. Não há ideal que mereça o sacrifício de um comboio de lata. Que império é útil ou que ideal profícuo? Tudo é humanidade, e a humanidade é sempre a mesma – variável mas inaperfeiçoável, oscilante mas improgressiva. Perante o curso inimplorável das coisas, a vida que tivemos sem saber como e perderemos sem saber quando, o jogo de dez mil xadrezes que é a vida em comum e luta, o tédio de contemplar sem utilidade o que se não realiza nunca [...] – que pode fazer o sábio senão pedir o repouso, o não ter que pensar em viver, pois basta ter que viver, um pouco de lugar ao sol e ao ar  e ao menos o sonho de que há paz do lado de lá dos montes.



[455]

Todos aqueles acasos infelizes da nossa vida, em que fomos, ou ridículos, ou reles, ou atrasados, consideremo-los, à luz da nossa serenidade íntima, como incômodos de viagem. Neste mundo, viajantes, volentes ou involentes, entre nada e nada ou entre tudo e tudo, somos somente passageiros, que não devem dar demasiado vulto aos percalços do percurso, às contundências da trajetória. Consolo-me com isto, não sei se porque me consolo, se porque há nisto que me console. Mas a consolação fictícia torna-se-me verdade se não penso nela.

Depois, há tantas consolações! Há o céu azul alto, limpo e sereno, onde bóiam sempre nuvens imperfeitas. Há a brisa leve, que agita os ramos duros das árvores, se é no campo; que faz oscilar as roupas estendidas, nos quartos andares, ou quintos, se é na cidade. Há o calor ou o fresco, se os há, e sempre, no fundo, vêm memórias, com suas saudades ou sua esperança, e um sorriso de magia à janela do nada, o que desejamos batendo à porta do que somos, como pedintes que são o Cristo.



[456]

Há quanto tempo não escrevo! Passei, em dias, séculos de renúncia incerta. Estagnei, como um lago deserto, entre paisagens que não há.

No entretanto, corria-me bem a monotonia variada dos dias, a sucessão nunca igual das horas iguais, a vida. Corria-me bem. Se dormisse, não me correria de outro modo. Estagnei, como um lago que não há, entre paisagens desertas.

É freqüente o desconhecer-me – o que sucede com freqüência aos que se conhecem. Assisto a mim nos vários disfarces com que sou vivo. Possuo de quanto muda o que é sempre o mesmo, de quanto se faz tudo o que é nada.

Relembro, longínquo em mim, como se viajara para dentro, a monotonia, todavia tão diferente, daquela casa de província... Ali passei a infância, mas não saberia dizer, se quisesse fazê-lo, se com mais ou menos felicidade do que passo a vida de hoje. Era outro o quem sou que ali vivia: são vidas diferentes, diversas, incomparáveis. As mesmas monotonias, que as aproximam por fora, eram sem dúvida diferentes por dentro. Não eram duas monotonias, mas duas vidas.

A que propósito relembro?

O cansaço. Lembrar é um repouso, porque é não agir. Que de vezes, para maior descanso, relembro o que nunca foi, e não há nitidez nem saudade nas minhas memórias das províncias onde estive como os que moram; tábua a tábua do soalho, oscilo o oscilar de outrem, nas vastas salas onde nunca morei.

De tal modo me converti na ficção de mim mesmo que qualquer sentimento natural, que eu tenho, desde logo, desde que nasce, se me transtorna num sentimento da imaginação – a memória em sonho, o sonho em esquecer-me dele, o conhecer-me em não pensar em mim.

De tal modo me desvesti do meu próprio ser que existir é vestir-me. Só disfarçado é que sou eu. E em torno de mim todos poentes incógnitos douram, morrendo, as paisagens que nunca verei.



[457]

As coisas modernas são

 A evolução dos espelhos;

 Os guarda-fatos.

Passamos a ser criaturas vestidas, de corpo e alma.

E, como a alma corresponde sempre ao corpo, um traje espiritual estabeleceu-se. Passamos a ter a alma essencialmente vestida, assim como passamos – homens, corpos – à categoria de animais vestidos.

Não é só o fato de que o nosso traje se torna uma parte de nós. É também a complicação desse traje e a sua curiosa qualidade de não ter quase nenhuma relação com os elementos da elegância natural do corpo nem com os dos seus movimentos.

Se me pedissem que explicasse o que é este meu estado de alma, através de uma razão social, eu responderia mudamente apontando para um espelho, para um cabide e para uma caneta com tinta.



[458]

No nevoeiro leve da manhã de meia-primavera, a Baixa desperta entorpecida e o sol nasce como que lento. Há uma alegria sossegada no ar com metade de frio, e a vida, ao sopro leve da brisa que não há, tirita vagamente do frio que já passou, pela lembrança do frio mais que pelo frio, pela comparação com o verão próximo, mais que pelo tempo que está fazendo.

Não abriram ainda as lojas, salvas as leitarias e os cafés, mas o repouso não é de torpor, como o de domingo; é de repouso apenas. Um vestígio louro antecede-se no ar que se revela, e o azul cora palidamente através da bruma que se esfina. O começo do movimento rareia pelas ruas, destaca-se a separação dos peões, e nas poucas janelas abertas, altas, madrugam também aparecimentos. Os elétricos traçam  a meio-ar o seu vinco móbil amarelo e numerado. E, de minuto a minuto, sensivelmente, as ruas desdesertam-se.

Vogo, atenção só dos sentidos, sem pensamento nem emoção. Despertei cedo; vim para a rua sem preconceitos. Examino como quem cisma. Vejo como quem pensa. E uma leve névoa de emoção se ergue absurdamente em mim; a bruma que vai saindo do exterior parece que se me infiltra lentamente.

Sem querer, sinto que tenho estado a pensar na minha vida. Não dei por isso, mas assim foi. Julguei que somente via e ouvia, que não era mais, em todo este meu percurso ocioso, que um reflexor de imagens dadas, um biombo branco onde a realidade projeta cores e luz em vez de sombras. Mas era mais, sem que o soubesse. Era ainda a alma que se nega, e o meu próprio abstrato observar era uma negação ainda.

Tolda-se o ar de falta de névoa, tolda-se de luz pálida, em a qual a névoa como que se misturou. Reparo subitamente que o ruído é muito maior, que muito mais gente existe. Os passos dos mais transeuntes são menos apressados. Aparece, a quebrar a sua ausência e a menor pressa dos outros, o correr andado das varinas, a oscilação dos padeiros, monstruosos de cesto, e [a] igualdade divergente das vendedeiras de tudo mais desmonotoniza-se só no conteúdo das cestas, onde as cores divergem mais que as coisas. Os leiteiros chocalham, como chaves ocas e absurdas, as latas desiguais do seu ofício andante. Os polícias estagnam nos cruzamentos, desmentido parados da civilização ao movimento invisível da subida do dia.

Quem me dera, neste momento o sinto, ser alguém que pudesse ver isto como se não tivesse com ele mais relação que o vê-lo – contemplar tudo como se fora o viajante adulto chegado hoje à superfície da vida! Não ter aprendido, da nascença em diante, a dar sentidos dados a estas coisas todas, poder vê-las na expressão que têm separadamente da expressão que lhes foi imposta. Poder conhecer na varina a sua realidade humana independentemente de se lhe chamar varina, e de saber que existe e que vende. Ver o polícia como Deus o vê. Reparar em tudo pela primeira vez, não apocalipticamente, como revelações do Mistério, mas diretamente como florações da Realidade.

Soam – devem ser oito as que não conto – badaladas de horas de sino ou relógio grande. Acordo de mim pela banalidade de haver horas, clausura que a vida social impõe à continuidade do tempo fronteira no abstrato, limite no desconhecido. Acordo de mim e, olhando para tudo, agora já cheio de vida e de humanidade costumada, vejo que a névoa que saiu de todo do céu, salvo o que no azul ainda paira de ainda não bem azul, me entrou verdadeiramente para a alma, e ao mesmo tempo entrou para a parte de dentro de todas as coisas, que é por onde elas têm contato com a minha alma. Perdi a visão do que via. Ceguei com vista. Sinto já com a banalidade do conhecimento. Isto agora não é já a Realidade: é simplesmente a Vida.

Sim, a vida a que eu também pertenço, e que também me pertence a mim; não já a Realidade, que é só de Deus, ou de si mesma, que não contém mistério nem verdade, que, pois que é real ou o finge ser, algures exista fixa, livre de ser temporal ou eterna, imagem absoluta, idéia de uma alma que fosse exterior.

Volvo lentos os passos mais rápidos do que julgo ao portão para onde subirei de novo para casa. Mas não entro; hesito; sigo para diante. A Praça da Figueira, bocejando venderes [sic] de várias cores, cobre-me, esfreguesando-se o horizonte de ambulante. Avanço lentamente, morto, e a minha visão já não é minha, já não é nada: é só a do animal humano que herdou, sem querer, a cultura grega, a ordem romana, a moral cristã e todas as mais ilusões que formam a civilização em que sinto. Onde estarão os vivos?



[459]

Gostava de estar no campo para poder gostar de estar na cidade. Gosto, sem isso, de estar na cidade, porém com isso o meu gosto seria dois.



[460]

Quanto mais alta a sensibilidade, e mais sutil a capacidade de sentir, tanto mais absurdamente vibra e estremece com as pequenas coisas. É precisa uma prodigiosa inteligência para ter angústia ante um dia escuro. A humanidade, que é pouco sensível, não se angustia com o tempo, porque faz sempre tempo; não sente a chuva senão quando lhe cai em cima.

O dia baço e mole escalda umidamente. Sozinho no escritório, passo em revista a minha vida, e o que vejo nela é como o dia que me oprime e me aflige. Vejo-me criança contente de nada, adolescente aspirando a tudo, viril sem alegria nem aspiração. E tudo isto se passou na moleza e no embaciado, como o dia que mo faz ver ou lembrar.

Qual de nós pode, voltando-se no caminho onde não há regresso, dizer que o seguiu como o devia ter seguido?



[461]

Sabendo como as coisas mais pequenas têm com facilidade a arte de me torturar, de propósito me esquivo ao toque das coisas mais pequenas. Quem, como eu, sofre porque uma nuvem passa diante do sol, como não há-de sofrer no escuro do dia sempre encoberto da sua vida?

O meu isolamento não é uma busca de felicidade, que não tenho alma para conseguir; nem de tranqüilidade, que ninguém obtém senão quando nunca a perdeu – mas de sono, de apagamento, de renúncia pequena.

As quatro paredes do meu quarto pobre são-me, ao mesmo tempo, cela e distância, cama e caixão. As minhas horas mais felizes são aquelas em que não penso nada, não quero nada, não sonho sequer, perdido num torpor de vegetal errado, de mero musgo que crescesse na superfície da vida. Gozo sem amargor a consciência absurda de não ser nada, o antessabor da morte e do apagamento.

Nunca tive alguém a quem pudesse chamar “Mestre”. Não morreu por mim nenhum Cristo. Nenhum Buda me indicou um caminho. No alto dos meus sonhos nenhum Apolo ou Atena me apareceu, para que me iluminasse a alma.



[462]

Mas a exclusão, que me impus, dos fins e dos movimentos da vida; a ruptura, que procurei, do meu contato com as coisas levou-me precisamente àquilo a que eu procurava fugir. Eu não queria sentir a vida, nem tocar nas coisas, sabendo, pela experiência do meu temperamento em contágio do mundo, que a sensação da vida era sempre dolorosa para mim. Mas ao evitar esse contato, isolei-me, e, isolando-me, exacerbei a minha sensibilidade já excessiva. Se fosse possível cortar de todo o contato com as coisas, bem iria à minha sensibilidade. Mas esse isolamento total não pode realizar-se. Por menos que eu faça, respiro; por menos que aja, movo-me. E, assim, conseguindo exacerbar a minha sensibilidade pelo isolamento, consegui que os fatos mínimos, que antes mesmo a mim nada fariam, me ferissem como catástrofes. Errei o método de fuga. Fugi, por um rodeio incômodo, para o mesmo lugar onde estava, com o cansaço da viagem sobre o horror de viver ali.

Nunca encarei o suicídio como uma solução, porque eu odeio a vida por amor a ela. Levei tempo a convencer-me deste lamentável equívoco em que vivo comigo. Convencido dele, fiquei desgostoso, o que sempre me acontece quando me convenço de qualquer coisa, porque o convencimento é em mim sempre a perda de uma ilusão.

Matei a vontade a analisá-la. Quem me tornara à infância antes da análise, ainda que antes da vontade!

Nos meus parques, sono morto, a sonolência dos tanques ao sol-alto, quando os rumores dos insetos chusmam na hora e me pesa viver, não como uma mágoa, mas como uma dor física por concluir.

Palácios muito longe, parques absortos, a estreiteza das áleas ao longe, a graça morta dos bancos de pedra para os que foram – pompas mortas, graça desfeita, ouropel perdido. Meu anseio que esqueço, quem me dera recuperar a mágoa com que te sonhei.



[463]

Sossego enfim. Tudo quanto foi vestígio e desperdício some-se-me da alma como se não fora nunca. Fico só e calmo. A hora que passo é como aquela em que me convertesse a uma religião. Nada porém me atrai para o alto, ainda que nada já me atraia para baixo. Sinto-me livre, como se deixasse de existir, conservando a consciência disso.

Sossego, sim, sossego. Uma grande calma, suave como uma inutilidade, desce em mim ao fundo do meu ser. As páginas lidas, os deveres cumpridos, os passos e os acasos de viver – tudo isso se me tornou numa vaga penumbra, num halo mal visível, que cerca qualquer coisa tranqüila que não sei o que é. O esforço, em que pus, uma ou outra vez, o esquecimento da alma; o pensamento, em que pus, uma vez ou outra, o esquecimento da ação – ambos se me volvem numa espécie de ternura sem sentimento, de compaixão frusta e vazia.

Não é o dia lento e suave, nublado e brando. Não é a aragem imperfeita, quase nada, pouco mais do que o ar que já se sente. Não é a cor anônima do céu aqui e ali azul, frouxamente. Não. Não, porque não sinto. Vejo sem intenção nem remédio. Assisto atento a espetáculo nenhum. Não sinto alma, mas sossego. As coisas externas, que estão nítidas e paradas, ainda as que se movem, são para mim como para o Cristo seria o mundo, quando, da altura de tudo, Satã o tentou. São nada, e compreendo que o Cristo se não tentasse. São nada, e não compreendo como Satã, velho de tanta ciência, julgasse que com isso tentaria.

Corre leve, vida que se não sente, riacho em silêncio móbil sob árvores esquecidas! Corre branda, alma que se não conhece, murmúrio que se não vê para além de grandes ramos caídos! Corre inútil, corre sem razão, consciência que o não é de nada, vago brilho ao longe, entre clareiras de folhas, que não se sabe de onde vem nem onde vai! Corre, corre, e deixa-me esquecer!

Vago sopro do que não ouso viver, hausto frustai do que não pôde sentir, murmúrio inútil do que não quis pensar, vai lento, vai frouxo, vai em torvelinhos que tens que ter e em declives que te dão, vai para a sombra ou para a luz, irmão do mundo, vai para a glória ou para o abismo, filho do Caos e da Noite, lembrando ainda, em qualquer recanto teu, de que os Deuses vieram depois, e de que os Deuses passam também.



[464]

Quem tenha lido as páginas deste livro, que estão antes desta, terá sem dúvida formado a idéia de que sou um sonhador. Ter-se-ia enganado se a formou. Para ser sonhador falta-me o dinheiro.

As grandes melancolias, as tristezas cheias de tédio, não podem existir senão com um ambiente de conforto e de sóbrio luxo. Por isso o Egeus de Poe, concentrado horas e horas numa absorção doentia, o faz num castelo antigo, ancestral, onde, para além das portas da grande sala onde jaz a vida, mordomos invisíveis administram a casa e a comida.

O grande sonho requer certas circunstâncias sociais. Um dia que, embevecido por certo movimento rítmico e dolente do que escrevera, me recordei de Chateaubriand, não tardou que me lembrasse de que eu não era visconde, nem sequer bretão. Outra vez que julguei sentir, no sentido do que dissera, uma semelhança com Rousseau, não tardou, também, que me ocorresse que, não [tendo] tido o privilégio de ser fidalgo e castelão, também o não tivera de ser suíço e vagabundo.

Mas, enfim, também há universo na Rua dos Douradores. Também aqui Deus concede que não falte o enigma de viver. E por isso, se são pobres, como a paisagem de carroças e caixotes, os sonhos que consigo extrair de entre as rodas e as tábuas, ainda assim são para mim o que tenho, e o que posso ter.

Alhures, sem dúvida, é que os poentes são. Mas até deste quarto andar sobre a cidade se pode pensar no infinito. Um infinito com armazéns em baixo, é certo, mas com estrelas ao fim... É o que me ocorre, neste acabar de tarde, à janela alta, na insatisfação do burguês que não sou e na tristeza do poeta que nunca poderei ser.



[465]

Quando o estio entra entristeço. Parece que a luminosidade, ainda que acre, das horas estivais devera acarinhar quem não sabe quem é. Mas não, a mim não me acarinha. Há um contraste demasiado entre a vida externa que exubera e o que sinto e penso, sem saber sentir nem pensar – o cadáver perenemente insepulto das minhas sensações. Tenho a impressão de que vivo, nesta pátria informe chamada o universo, sob uma tirania política que, ainda que me não oprima diretamente, todavia ofende qualquer oculto princípio da minha alma. E então desce em mim, surdamente, lentamente, a saudade antecipada do exílio impossível.

Tenho principalmente sono. Não um sono que traz latente, como todos os sonos, ainda os mórbidos, o privilégio físico do sossego. Não um sono que, porque vai esquecer a vida, e porventura trazer sonhos, traz na bandeja com que nos vem até à alma as oferendas plácidas de uma grande abdicação. Não: este é um sono que não consegue dormir, que pesa nas pálpebras sem as fechar, que junta num gesto que se sente ser de estupidez e repulsa as comissuras sentidas dos beiços descrentes. Este é um sono como o que pesa inutilmente sobrei o corpo nas grandes insônias da alma.

Só quando vem a noite de algum modo sinto, não uma alegria, mas um repouso que, por outros repousos serem contentes, se sente contente por analogia dos sentidos. Então o sono passa, a confusão do lusco-fusco mental que esse sono dera esbate-se, esclarece-se, quase se ilumina. Vem, um momento, a esperança de outras coisas. Mas essa esperança é breve. O que sobrevém é um tédio sem sono nem esperança, o mau despertar de quem não chegou a dormir. E da janela do meu quarto fito, pobre alma cansada de corpo, muitas estrelas; muitas estrelas, nada, o nada, mas muitas estrelas...



[466]

O homem não deve poder ver a sua própria cara. Isso é o que há de mais terrível. A Natureza deu-lhe o dom de não a poder ver, assim como de não poder fitar os seus próprios olhos.

Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto. E a postura, mesmo, que tinha de tomar, era simbólica. Tinha de se curvar, de se baixar para cometer a ignomínia de se ver.

O criador do espelho envenenou a alma humana.



[467]

Ouvia-me lendo os meus versos – que nesse dial li bem, porque me distraí – e disse-me, com a simplicidade de uma lei natural: “Você, assim, e com outra cara, seria um grande fascinador.” A palavra “cara”, mais que a referência que continha, ergueu-me de mim pela gola do que me não conheço.

Vi o espelho do meu quarto, o meu pobre rosto de mendigo sem pobreza; e de repente o espelho virou-se  e o espectro da Rua dos Douradores abriu-se diante de mim como um nirvana do carteiro.

A acuidade das minhas sensações chega a ser uma doença que me é alheia. Sofre-a outro de quem eu sou a parte doente, porque verdadeiramente sinto como em dependência de uma maior capacidade de sentir. Sou como um tecido especial, ou até uma célula, sobre a qual pesasse toda a responsabilidade de um organismo.

Se penso, é porque divago; se sonho, é porque estou desperto. Tudo em mim se embrulha comigo, e não tem forma de saber de ser.



[468]

Quando vivemos constantemente no abstrato – seja o abstrato do pensamento, seja o da sensação pensada –, não tarda que, contra nosso mesmo sentimento ou vontade, se nos tornem fantasmas aquelas coisas da vida real que, em acordo com nós mesmos, mais deveríamos sentir.

Por mais amigo, e verdadeiramente amigo, que eu seja de alguém, o saber que ele está doente, ou que morreu, não me dá mais que uma impressão vaga, incerta, apagada, que me envergonho de sentir. Só a visão direta do caso, a sua paisagem, me daria emoção. À força de viver de imaginar, gasta-se o poder de imaginar, sobretudo o de imaginar o real. Vivendo mentalmente do que não há nem pode haver, acabamos por não poder cismar o que pode haver.

Disseram-me hoje que tinha entrado para o hospital, para ser operado, um velho amigo meu, que não vejo há muito tempo, mas que sinceramente lembro sempre com o que suponho ser saudade. A única sensação que recebi, de positiva e de clara, foi a da maçada que forçosamente me daria o ter de ir visitá-lo, com a alternativa irônica de, não tendo paciência para a visita, ficar arrependido de a não fazer.

Nada mais... De tanto lidar com sombras, eu mesmo me converti numa sombra – no que penso, no que sinto, no que sou. A saudade do normal que nunca fui entra então na substância do meu ser. Mas é ainda isso, e só isso, que sinto. Não sinto propriamente pena do amigo que vai ser operado. Não sinto propriamente pena de todas as pessoas que vão ser operadas, de todos quantos sofrem e penam neste mundo. Sinto pena, tão-somente, de não saber ser quem sentisse pena.

E, num momento, estou pensando em outra coisa, inevitavelmente, por um impulso que não sei o que é. E então, como se estivesse delirando, mistura-se-me com o que não cheguei a sentir, com o que não pude ser, um rumor de árvores, um som de água correndo para tanques, uma quinta inexistente... Esforço-me por sentir, mas já não sei como se sente. Tornei-me a sombra de mim mesmo, a quem entregasse o meu ser. Ao contrário daquele Peter Schlemil do conto alemão, não vendi ao Diabo a minha sombra, mas a minha substância. Sofro de não sofrer, de não saber sofrer. Vivo ou finjo que vivo? Durmo ou estou desperto? Uma vaga aragem, que sai fresca do calor do dia, faz-me esquecer tudo. Pesam-me as pálpebras agradavelmente... Sinto que este mesmo sol doura os campos onde não estou e onde não quero estar... Do meio dos ruídos da cidade sai um grande silêncio... Que suave! Mas que mais suave, talvez, se eu pudesse sentir!...



[469]

O próprio escrever perdeu a doçura para mim. Banalizou-se tanto, não só o ato de dar expressão a emoções como o de requintar frases, que escrevo como quem come ou bebe, com mais ou menos atenção, mas meio alheado e desinteressado, meio atento, e sem entusiasmo nem fulgor.



[470]

Falar é ter demasiada consideração pelos outros. Pela boca morrem o peixe e Oscar Wilde.



[471]

Desde que possamos considerar este mundo uma ilusão e um fantasma, poderemos considerar tudo que nos acontece como um sonho, coisa que fingiu ser porque dormíamos. E então nasce em nós uma indiferença sutil e profunda para com todos os desaires e desastres da vida. Os que morrem viraram a uma esquina, e por isso os deixamos de ver; os que sofrem passam perante nós, se sentimos, como um pesadelo, se pensamos, como um devaneio ingrato. E o nosso próprio sofrimento não será mais que esse nada. Neste mundo dormimos sobre o lado esquerdo e ouvimos nos sonhos a existência opressa do coração.

Mais nada... Um pouco de sol, um pouco de brisa, umas árvores que emolduram a distância, o desejo de ser feliz, a mágoa de os dias passarem, a ciência sempre incerta e a verdade sempre por descobrir... Mais nada, mais nada... Sim, mais nada...



[472]

Atingir, no estado místico, só o que esse estado tem de grato sem o que tem de exigente; ser o extático de deus nenhum, o místico ou epopta sem iniciação; passar o curso dos dias na meditação de um paraíso em que se não crê – isto tudo sabe bem à alma, se ela conhece o que é desconhecer.

Vão altas, por cima de onde estou, corpo dentro de uma sombra, as nuvens silenciosas; vão altas, por cima de onde estou, alma cativa num corpo, as verdades incógnitas... Vai alto tudo... E tudo passa no alto como em baixo, sem nuvem que deixe mais do que chuva ou verdade que deixe mais do que dor... Sim, tudo o que é alto passa alto, e passa; tudo o que é de apetecer está longe e passa longe... Sim, tudo atrai, tudo é alheio e tudo passa.

Que me importa saber, ao sol ou à chuva, corpo ou alma, que passarei também? Nada, salvo a esperança de [que] tudo seja nada e portanto o nada seja tudo.



[473]

Em qualquer espírito, que não seja disforme, existe a crença em Deus. Em qualquer espírito, que não seja disforme, não existe crença em um Deus definido. É qualquer ente, existente e impossível, que rege tudo; cuja pessoa, se a tem, ninguém pode definir; cujos fins, se deles usa, ninguém pode compreender. Chamando-lhe Deus dizemos tudo, porque, não tendo a palavra Deus sentido algum preciso, assim o afirmamos sem dizer nada. Os atributos de infinito, de eterno, de onipotente, de sumamente justo ou bondoso, que por vezes lhe colamos, descolam-se por si como todos os adjetivos desnecessários quando o substantivo basta. E Ele, a que, por indefinido, não podemos dar atributos, é, por isso mesmo, o substantivo absoluto. A mesma certeza e o mesmo vago existem quanto à sobrevivência da alma. Todos nós sabemos que morremos; todos nós sentimos que não morreremos. Não é bem um desejo, nem uma esperança, que nos traz essa visão no escuro de que a morte é um mal-entendido: é um raciocínio feito com as entranhas, que repudia [...]



[474]

Um dia

Em vez de almoçar – necessidade que tenho de fazer acontecer-me todos os dias – fui ver o Tejo, e voltei a vaguear pelas ruas sem mesmo supor que achei útil à alma vê-lo. Ainda assim...

Viver não vale a pena. Só olhar é que vale a pena. Poder olhar sem viver realizaria a felicidade, mas é impossível, como tudo quanto costuma ser o que sonhamos. O êxtase que não incluísse a vida!...

Criar ao menos um pessimismo novo, uma nova negação, para que tivéssemos a ilusão que de nós alguma coisa, ainda que para mal, ficava!



[475]

De que é que você está  a rir?, perguntou-me sem mal a voz do Moreira de entre para lá das duas prateleiras do meu alçado. [...] Era uma troca de nomes que eu ia fazendo..., e acalmei [os] pulmões ao falar. [...] Ah, disse o Moreira rapidamente, e a paz poeirosa desceu de novo sobre o escritório e sobre mim.

O senhor Visconde de Chateaubriand aqui a fazer contas! O senhor professor Amiel aqui num banco alto real! O senhor Conde Alfred de Vigny a debitar o Grandela! Senancour nos Douradores! Nem o Bourget, coitado, que custa a ler como uma escada sem elevador... Volto-me para trás do parapeito para ver bem de novo o meu Boulevard de Saint Germain, e justamente nesta altura o sócio do roceiro está cuspindo para a rua. E entre pensar tudo isto e estar fumando, e não ligar bem uma coisa e outra, o riso mental encontra o fumo, e, embrulhando-se na garganta, expande-se num ataque tímido de riso audível.



[476]

Parecerá a muitos que este meu diário, feito para mim, é artificial demais. Mas é de meu natural ser artificial. Com que hei-de eu entreter-me, depois, senão com escrever cuidadosamente estes apontamentos espirituais? De resto, não cuidadosamente os escrevo. E, mesmo, sem cuidado limador que os agrupo. Penso naturalmente nesta minha linguagem requintada. Sou um homem para quem o mundo exterior é uma realidade interior. Sinto isto não metafisicamente, mas com os sentidos usuais com que colhemos a realidade. A nossa frivolidade de ontem é hoje uma saudade constante que me rói a vida.

Há claustros na hora. Entardeceu nas esquivanças. Nos olhos azuis dos tanques um último desespero reflete a morte do sol. Nós éramos tanta coisa dos parques antigos; de tão voluptuoso modo estávamos incorporados na presença das estátuas, no talhado inglês das áleas. Os vestidos, os espadins, as perruques, os meneios e os cortejos pertenciam tanto à substância de que o nosso espírito era feito! Nós quem? O repuxo apenas, no jardim deserto, água alada indo já menos alta no seu ato triste de querer voar.



[477]

... e os lírios nas margens de rios remotos, frios e solenes, numa tarde eterna no fundo de continentes verdadeiros. Sem mais nada e contudo verdadeiros.



[478]

(lunar scene)

Toda a paisagem não está em parte nenhuma.



[479]

Em baixo, afastando-se do alto onde estou em desnivelamentos de sombra, dorme ao luar, álgida, a cidade inteira. Um desespero de mim, uma angústia de existir preso a mim extravasa-se por mim todo sem me exceder, compondo-me o ser em ternura, medo, dor e desolação. Um tão inexplicável excesso de mágoa absurda, uma dor tão desolada, tão órfã, tão metafisicamente minha.



[480]

Alastra ante meus olhos a cidade incerta e silente. As casas desigualam-se num aglomerado retido, e o luar, com manchas de incerteza, estagna de madrepérola os solavancos mortos da profusão. Há telhados e sombras, janelas e idade média. Não há de que haver arredores. Pousa no que se vê um vislumbre de longínquo. Por sobre de onde vejo há ramos negros de árvores, e eu tenho o sono da cidade inteira no meu coração dissuadido. Lisboa ao luar e o meu cansaço de amanhã! Que noite! Prouvera a quem causou os pormenores do mundo que não houvesse para mim melhor estado ou melodia que o momento lunar destacado em que me desconheço conhecido. Nem brisa, nem gente interrompe o que não penso. Tenho sono do mesmo modo que tenho vida. Só que sinto nas pálpebras como se houvesse o que fazer-mas pesar. Ouço a minha respiração. Durmo ou desperto?

Custa-me um chumbo dos sentidos o mover-me com os pés para onde moro. A carícia do apagamento, a flor dada do inútil, o meu nome nunca pronunciado, o meu desassossego entre margens, o privilégio de deveres cedidos, e, na última curva do parque avoengo, o outro século como um roseiral.



[481]

Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado.

Quando me sentei na cadeira, perguntei, por um acaso que lembra, ao rapaz barbeiro que me ia colocando no pescoço um linho frio e limpo, como ia o colega da cadeira da direita, mais velho e com espírito, que estava doente. Perguntei-lhe sem que me pesasse a necessidade de perguntar: ocorreu-me a oportunidade pelo local e a lembrança. “Morreu ontem”, respondeu sem tom a voz que estava por detrás da toalha e de mim, e cujos dedos se erguiam da última inserção na nuca, entre mim e o colarinho. Toda a minha boa disposição irracional morreu de repente, como o barbeiro eternamente ausente da cadeira ao lado. Fez frio em tudo quanto penso. Não disse nada.

Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais – se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida.

O velho sem interesse das polainas sujas que cruzava freqüentemente comigo às nove e meia da manhã? O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? O velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria? O dono pálido da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim – sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um “o que será dele?”. E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer.



Os grandes trechos

A divina inveja

Sempre que tenho uma sensação agradável em companhia de outros, invejo-lhes a parte que tiveram nessa sensação. Parece-me um impudor que eles sentissem o mesmo do que eu, que me devassassem a alma por intermédio da alma, unissonamente sentindo, deles.

A grande dificuldade do orgulho que para mim oferece a contemplação das paisagens, é a dolorosa circunstância de já as haver com certeza contemplado alguém com um intuito igual.

A horas diferentes, é certo, e em outros dias. Mas fazer-me notar isso seria acariciar-me e amansar-me com uma escolástica que sou superior a merecer. Sei que pouco importa a diferença, que com o mesmo espírito em olhar, outros tiveram ante a paisagem um modo de ver, não como, mas parecido com o meu.

Esforço-me por isso para alterar sempre o que vejo de modo a torná-lo irrefragavelmente meu – de alterar, mentindo – o momento belo e na mesma ordem de linha de beleza, a linha do perfil das montanhas; de substituir certas árvores e flores por outras, vastamente as mesmas diferentissimamente; de ver outras cores de efeito idêntico no poente – e assim crio, de educado que estou, e com o próprio gesto de olhar com que espontaneamente vejo, um modo interior do exterior.

Isto, porém, é o grau ínfimo de substituição do visível. Nos meus bons e abandonados momentos de sonho arquiteto muito mais.

Faço a paisagem ter para mim os efeitos da música, evocar-me imagens visuais – curioso e dificílimo triunfo do êxtase, tão difícil porque o agente evocativo é da mesma ordem de sensações que o que há-de evocar.

O meu triunfo máximo no gênero foi quando, a certa hora ambígua de aspecto e luz, olhando para o Cais do Sodré nitidamente o vi um pagode chinês com estranhos guizos nas pontas dos telhados como chapéus absurdos – curioso pagode chinês pintado no espaço, sobre o espaço-cetim, não sei como, sob o espaço que perdura na abominável terceira dimensão. E a hora cheirou-me verdadeiramente a um ruído arrastado e longínquo e com uma grande inveja de realidade...



Carta

Assim soubesses tu compreender o teu dever de seres meramente o sonho de um sonhador. Seres apenas o turíbulo da catedral dos devaneios. Talhares os teus gestos como sonhos, para que fossem apenas janelas abertas para paisagens novas da tua alma. De tal modo arquitetar o teu corpo em arremedos de sonho que não fora possível ver-te sem pensar noutra coisa, que lembrasses tudo menos tu própria, que ver-te fosse ouvir música e atravessar, sonâmbulo, grandes paisagens de lagos mortos, vagas florestas silenciosas perdidas ao fundo doutras épocas, onde invisíveis pares diversos vivem sentimentos que não temos.

Eu não te quereria para nada senão para te não ter. Queria que, sonhando eu e se tu aparecesses, eu pudesse imaginar-me ainda sonhando – nem te vendo talvez, mas talvez reparando que o luar enchera de os lagos mortos e que ecos de canções ondeavam subitamente na grande floresta inexplícita, perdida em épocas impossíveis.

A visão de ti seria o leito onde a minha alma adormecesse, criança doente, para sonhar outra vez com outro céu. Falares? Sim, mas que ouvir-te fosse não te ouvir mas ver grandes pontes ao luar ligar as duas margens escuras do rio que vai ter ao ancião mar onde as caravelas são nossas para sempre.

Sorris? Eu não sabia disso, mas nos meus céus interiores andavam as estrelas. Chamas-me dormindo. Eu não reparava nisso mas no barco longínquo cuja vela de sonho ia sob o luar, vejo longínquas marinhas.



Cascata

A criança sabe que a boneca não é real, e trata-a como real, até chorá-la e se desgostar quando se parte. A arte da criança é de irrealizar. Bendita essa idade errada da vida, quando se nega a vida por não haver sexo, quando se nega a realidade por brincar, tomando por reais a coisas que o não são!

Que eu seja volvido criança e o fique sempre, sem que importem os valores que os homens dão às coisas nem as relações  que os homens estabelecem entre elas. Eu, quando era pequeno, punha muitas vezes os soldados de chumbo de pernas para o ar... E há argumento algum, com jeito lógico para convencer, que me prove que os soldados reais não devem andar de cabeça para baixo?

A criança não dá mais valor ao ouro do que ao vidro. E na verdade, o ouro vale mais? A criança acha obscuramente absurdos as paixões, as raivas, os receios que vê esculpidos em gestos adultos. E não são na verdade absurdos e vãos todos os nossos receios, e todos os nossos ódios, e todos os nossos amores?

Ó divina e absurda intuição infantil! Visão verdadeira das coisas, que nós vestimos de convenções no mais nu vê-las, que nós  embrumamos de idéias nossas no mais direto olhá-las!

Será Deus uma criança muito grande? O universo inteiro não parece uma brincadeira, uma partida de criança travessa? Tão irreal, tão, tão [...]

Lancei-vos, rindo, esta idéia ao ar, e vede como ao vê-la distante de mim de repente vejo o que de horrorosa ela é (Quem sabe se ela não contém a verdade?). E ela cai e quebra-se-me aos pés, em pó de horror e estilhaços de angústia...

Acordo para saber que existo...

Um grande tédio incerto gorgoleja erradamente fresco ao ouvido, pelas cascatas, cortiçada abaixo, lá no fundo estúpido do jardim.



Cenotáfio

Nem viúva nem filho lhe pôs na boca o óbolo, com que pagasse a Caronte. São velados para nós os olhos com que transpôs o Estige e viu nove vezes refletido nas águas ínferas o rosto que não conhecemos. Não tem nome entre nós a sombra agora errante nas margens dos rios soturnos; o seu nome é sombra também.

Morreu pela Pátria, sem saber como nem porquê. O seu sacrifício teve a glória de não se conhecer. Deu a vida com toda a inteireza da alma: por isso, não por dever; por amor à Pátria, não por consciência dela. Defendeu-a como quem defende uma mãe, de quem somos filhos não por lógica, senão nascimento. Fiel ao segredo primevo, não pensou nem quis, mas viveu a morte instintivamente, como havia vivido a sua vida. A sombra que usa agora se irmana com as que caíram em Termópilas, fiéis na carne ao juramento que haviam nascido. Morreu pela Pátria como o sol nasce todos os dias. Foi por natureza o que a Morte havia de torná-lo. Não caiu servo de uma fé ardente, não o mataram combatendo pela baixeza de um grande ideal. Livre da injúria da fé e do insulto do humanitarismo, não caiu em defesa de uma idéia política, ou do futuro da humanidade, ou de uma religião por haver. Longe da fé no outro mundo, com que se enganam os crédulos de Maomé  e os sequazes de Cristo, viu a morte chegar sem esperar nela a vida, viu a vida passar sem que esperasse vida melhor.

Passou naturalmente, como o vento e o dia, levando consigo a alma, que o fizera diferente. Mergulhou na sombra como quem entra na porta onde chega.

Morreu pela Pátria, a única coisa superior a nós de que temos conhecimento e razão. O paraíso do maometano ou cristão, o esquecimento transcendente do budista não se lhe refletiram nos olhos quando neles se apagou a chama, que a vivo na terra.

Não soube quem foi, como não sabemos quem é. Cumpriu o dever, sem saber que cumpria. Guiou-o o que faz florir as rosas e ser bela  a morte das folhas. A vida não tem razão melhor, nem a morte melhor galardão. Visita agora, conforme os deuses concedem, as regiões onde não há a luz, passando os lamentos de Cocito e o fogo de Flegetonte e ouvindo na noite o lapso leve da lívida onda Leteia.

Ele é anônimo como o instinto que o matou. Não pensou que ia morrer pela pátria; morreu por ela. Não determinou cumprir o seu dever; cumpriu-o. A quem não teve nome na alma, justo é que não perguntemos que nome definiu seu corpo. Foi português; não sendo tal português, é o português sem o seu lugar não é ao pé dos criadores de Portugal, cuja estatura é outra, e outra a consciência. Não lhe cabe a companhia dos semideuses, por cuja audácia cresceram os caminhos do mar e houve mais terra que caber no nosso alcance.

Nem estátua nem lápide narre quem foi o que foi todos nós; como é todo o povo, deve ter por túmulo toda esta terra. Em sua própria memória o devemos sepultar, e por lápide pôr-lhe o seu exemplo apenas.



Conselhos às mal-casadas

(As mal-casadas são todas as mulheres casadas e algumas solteiras.)

Livrai-vos sobretudo de cultivar os sentimentos humanitários. O humanitarismo é uma grosseria. Escrevo a frio, raciocinadamente, pensando em vosso bem-estar, pobres mal-casadas.

A arte toda, toda a libertação, está em submeter o espírito o menos possível, deixando ao corpo, que se submeta à vontade.

Ser imoral não vale a pena, porque diminui, aos olhos dos outros, a vossa personalidade, ou a banaliza. Ser imoral dentro de si, cercada do máximo respeito alheio. Ser esposa e mãe corporeamente virginal e dedicada, e ter, porém, contatos carnais inexplicáveis com todos os homens da vizinhança, desde os merceeiros até aos – eis o que maior sabor tem a quem realmente quer gozar e alargar a sua individualidade, sem descer ao método da criada de servir, que, por ser também delas, é baixo, nem cair na honestidade rigorosa da mulher profundamente estúpida, que é decerto filha do interesse.

Segundo a vossa superioridade, almas femininas que me ledes, sabereis compreender o que escrevo. Todo o prazer é do cérebro, todos os crimes, que se dão, é só em sonhos que se cometem! Lembro-me de um crime belo, real. Não o houve nunca. São belos os que nós não conhecemos. Bórgia cometeu belos crimes? Acreditai-me que não cometeu. Quem os cometeu belíssimos, profusos, frutuosos, foi o nosso sonho de Bórgia, foi a idéia de Bórgia que há em nós. Tenho a certeza que o César Bórgia que existiu era um banal e um estúpido, tinha de o ser porque existir é sempre estúpido e banal.

Dou-vos estes conselhos desinteressadamente, aplicando o meu método a um caso que me não interessa. Pessoalmente, os meus sonhos são de império e glória; não são sensuais de modo algum. Mas quero ser-vos útil, ainda que mais não seja, só para me arreliar, porque detesto o útil. Sou altruísta a meu modo.



Conselhos às mal-casadas

Proponho-me ensinar-lhes como trair o seu marido em imaginação.

Acreditem-me: só as criaturas ordinárias traem o marido realmente. O pudor é uma condição sine qua non de prazer sexual. O entregar-se a mais de um homem mata o pudor.

Concedo que a inferioridade feminina precisa de macho. Acho que, ao menos, se deve limitar a um macho só, fazendo dele, se disso precisar, centro de um círculo, de raio crescente, de machos imaginados.

A melhor ocasião para fazer isso é nos dias que antecedem os da menstruação.

Assim:

Imaginam o seu marido mais branco de corpo. Se imaginam bem, senti-lo-ão mais branco sobre si.

Retenham todo o gesto de sensualidade excessiva. Beijem o marido que lhes estiver em cima do corpo, e mudem com a imaginação o homem num olhar – lembrem quem lhes estiver em cima da alma.

A essência do prazer é o desdobramento. Abram a porta da janela ao Felino em vós.

Como trocasse o marido. Importa que o marido às vezes se zangue.

O essencial é começar a sentir a atração pelas coisas que repugnam, não perdendo a disciplina exterior.

A maior indisciplina interior junta à máxima disciplina exterior compõe a perfeita sensualidade. Cada gesto que realiza um sonho ou um desejo, irrealiza-o realmente.

A substituição não é tão difícil como julgam. Chamo substituição à prática que consiste em imaginar-se a gozar com um homem A quando se está copulando com um homem B.



[Conselhos às mal-casadas]

Minhas queridas discípulas, desejo-lhes, com um fiel cumprimento dos meus conselhos, inúmeras e desdobradas volúpias com o, não nos atos do, animal macho a que a Igreja ou o Estado as tiver atado pelo ventre e pelo apelido.

É fincando os pés no solo que a ave desprende o vôo. Que esta imagem, minhas filhas, vos seja a perpétua lembrança do único mandamento espiritual.

Ser uma cocotte, cheia de todos os modos de vícios, sem trair o marido, nem sequer com um olhar – a volúpia disto, se souberdes consegui-lo.

Ser cocotte para dentro, trair o marido para dentro, está-lo traindo nos abraços que lhe dais, não ser para ele o sentido do beijo que lhe dais – oh mulheres superiores, ó minhas misteriosas Cerebrais – a volúpia é isso.

Por que não aconselho eu isto aos homens também? Porque o Homem é outra espécie de ente. Se é inferior, recomendo-lhe que use de quantas mulheres puder: faça isso e sirva-se do meu desprezo quando [...] E o homem superior não tem necessidade de nenhuma mulher. Não precisa de posse sexual para a sua volúpia. Ora a mulher, mesmo superior, não aceita isto: a mulher é essencialmente sexual.



Declaração de diferença

As coisas do estado e da cidade não têm mão sobre nós. Nada nos importa que os ministros e os áulicos façam falsa gerência das coisas da nação. Tudo isso se passa lá fora, como a lama nos dias de chuva. Nada temos com isso, que tenha que ver ao mesmo tempo conosco.

Semelhantemente nos não interessam as grandes convulsões, como a guerra e as crises dos países. Enquanto não entram por nossa casa, nada nos importa a que portas batam. Isto, que parece que se apóia num grande desprezo pelos outros, realmente tem apenas por base o nosso apreço cético por nós próprios.

Não somos bondosos nem caritativos – não porque sejamos o contrário, mas porque não somos nem uma coisa, nem a outra. A bondade é a delicadeza das almas grosseiras. Tem para nós o interesse de um episódio passado em outras almas, e com outras formas de pensar. Observamos, e nem aprovamos, nem deixamos de aprovar. O nosso mister é não ser nada.

Seríamos anarquistas se tivéssemos nascido nas classes que a si próprias chamam desprotegidas, ou em outras quaisquer de onde se possa descer ou subir. Mas, na verdade nós somos, em geral, criaturas nascidas nos interstícios das classes e das divisões sociais – quase sempre naquele espaço decadente entre a aristocracia e a (alta) burguesia, o lugar social dos gênios e dos loucos com quem se pode simpatizar.

A ação desorienta-nos, em parte por incompetência física, ainda mais por inapetência moral. Parece-nos imoral agir. Todo o pensamento nos parece degradado pela expressão em palavras, que o tornam coisa dos outros, que o fazem compreensível aos que o compreendem.

A nossa simpatia é grande pelo ocultismo e pelas artes do escondido. Não somos, porém, ocultistas. Falha-nos para isso a vontade inata, e, ainda, a paciência para a educar de modo a tornar-se o perfeito instrumento dos magos e dos magnetizadores. Mas simpatizamos com o ocultismo, sobretudo porque ele sói exprimir-se de modo a que muitos que lêem, e mesmo muitos que julgam compreender, nada compreendem. É soberbamente superior essa atitude misteriosa. É, além disso, fonte copiosa de sensações do mistério e de terror: as larvas do astral, os estranhos entes de corpos diversos que a magia cerimonial evoca nos seus templos, as presenças desencarnadas da matéria deste plano, que pairam em torno aos nossos sentidos fechados, no silêncio físico do som interior – tudo isso nos acaricia com uma mão viscosa, terrível, no desabrigo e na escuridão.

Mas não simpatizamos com os ocultistas na parte em que eles são apóstolos e amadores da humanidade; isso os despe do seu mistério. A única razão para um ocultista funcionar no astral é sob a condição de o fazer por estética superior, e não para o sinistro fim de fazer bem a qualquer pessoa.

Quase sem o sabermos morde-nos uma simpatia ancestral pela magia negra, pelas formas proibidas da ciência transcendente, pelos Senhores do Poder que se venderam à Condenação e à Reencarnação degradada. Os nossos olhos de débeis e de incertos perdem-se, com um cio feminino, na teoria dos graus invertidos e nos ritos inversos, na curva sinistra da hierarquia descendente.

Satã, sem que o queiramos, possui para nós uma sugestão como que de macho para a fêmea. A serpente da Inteligência Material enroscou-se-nos no coração, como no Caduceu simbólico do Deus que comunica – Mercúrio, senhor da Compreensão.

Aqueles de nós que não são pederastas desejariam ter a coragem de o ser. Toda a inapetência para a ação inevitavelmente feminiza. Falhamos a nossa verdadeira profissão de donas-de-casa e de castelãs sem que fazer por um transvio de sexo na encarnação presente. Embora não acreditemos absolutamente nisto, sabe ao sangue da ironia fazer em nós como se o acreditássemos.

Tudo isto não é por maldade, mas por debilidade apenas. Adoramos, a sós, o mal, não por ele ser o mal, mas porque ele é mais intenso e forte que o Bem, e tudo quanto é intenso e forte atrai os nervos que deviam ser de mulher. Pecca fortiter não pode ser conosco, que não temos força, nem sequer a da inteligência, que é a que temos. Pensa em pecar fortemente – é o mais que para nós pode valer essa indicação aguda. Mas nem mesmo isso às vezes nos é possível: a própria vida interior tem uma realidade que às vezes nos dói por ser uma realidade qualquer. Haver leis para a associação de idéias, como para todas as operações do espírito, insulta a nossa indisciplina nativa.



Diário ao acaso

Todos os dias a Matéria me maltrata. A minha sensibilidade é uma chama ao vento.

Passo por uma rua e estou vendo na face dos transeuntes, não a expressão que eles realmente têm, mas a expressão que teriam para comigo se soubessem a minha vida, e como eu sou, se eu trouxesse transparente nos meus gestos e no meu rosto a ridícula e tímida anormalidade da minha alma. Em olhos que não me olham, suspeito troças que acho naturais, dirigidas contra a exceção deselegante que sou entre um mundo de gente que age e goza; e no fundo suposto de fisionomias que passam gargalha da acanhada gesticulação da minha vida uma consciência dela que sobreponho e interponho. Debalde, depois de pensar isto, procuro convencer-me de que de mim, e só de mim, a idéia da troça e do opróbrio leve parte e esguicha. Não posso já chamar a mim a imagem do verme ridículo, uma vez objetiva do nos outros. Sinto-me, de repente, abafar e hesitar numa estufa de mofas e inimizades. Todos me apontam a dedo do fundo das suas almas. Lapidam-me de alegres e desdenhosas troças todos que passam por mim. Caminho entre fantasmas inimigos que a minha imaginação doente imaginou e localizou em pessoas reais. Tudo me esbofeteia e me escarnece. E às vezes, em pleno meio da rua – inobservado, afinal – paro, hesito, procuro como que uma súbita nova dimensão, uma porta para o interior do espaço, para o outro lado do espaço, onde sem demora fuja da minha consciência dos outros, da minha intuição demasiado objetiva da realidade das vivas almas alheias.

Será que o meu hábito de me colocar na alma dos outros, me leva a ver-me como os outros me vêem, ou me veriam se em mim reparassem? Sim. E uma vez eu perceba como eles sentiriam a meu respeito se me conhecessem, é como se eles o sentissem na verdade, o estivessem sentindo, e sentindo-o, exprimindo-o naquele momento. Conviver com os outros é uma tortura para mim. E eu tenho os outros em mim. Mesmo longe deles sou forçado ao seu convívio. Sozinho, multidões me cercam. Não tenho para onde fugir a não ser que fuja de mim.

Ó grandes montes ao crepúsculo, ruas quase estreitas ao luar, ter a vossa inconsciência de, a vossa espiritualidade de Matéria apenas, sem interior, sem sensibilidade, sem onde pôr sentimentos, nem pensamentos, nem desassossegos de espírito! Árvores tão apenas árvores, com uma verdura tão agradável aos olhos, tão exterior aos meus cuidados e às minhas penas, tão consoladora para as minhas angústias porque não tendes olhos com que as fitardes nem alma que, fitável por esses olhos, possa não as compreender e troçá-las! Pedras do caminho, troncos decepados, mera terra anônima do chão de toda a parte, minha irmã porque a vossa insensibilidade à minha alma é um carinho e um repouso... Conjunto ao sol ou sob a lua da Terra minha mãe, tão enternecidamente minha mãe, porque não podes criticar-me sequer, como a minha própria mãe humana pode, porque não tens alma com que sem pensar nisso me analises, nem rápidos olhares que traiam pensamentos de mim que nem a ti própria confesses. Mar enorme, meu ruidoso companheiro da infância, que me repousas e me embalas, porque a tua voz não é humana e não pode um dia citar em voz baixa a ouvidos humanos as minhas fraquezas, e as minhas imperfeições. Céu vasto, céu azul, céu próximo do mistério dos anjos, tu não me olhas com olhos verdes, tu se pões o sol a teu peito não o fazes para me atrair, nem se te de estrelas o antefazes para me desdenhar... Paz universa da Natureza, materna pela sua ignorância de mim; sossego afastado dos átomos e dos sistemas, tão irmão no teu nada poder saber a meu respeito... Eu queria orar à vossa imensidade e à vossa calma, como mostra de gratidão por vos ter e poder amar sem suspeitas nem dúvidas; queria dar ouvidos ao vosso não poder-ouvir, e vós sempre nos ouvindo, dar olhos a vossa sublime cegueira, mas vós a verdes, e ser objeto das vossas atenções por esses supostos olhos e ouvidos, consolado de ser presente ao vosso Nada atento como de uma morte definitiva, para longe, sem esperança de outra vida, para além dum Deus e da possibilidade de seres, voluptuosamente nulo e da cor espiritual de todas as matérias...



Diário lúcido

A minha vida, tragédia caída sob a pateada dos anjos e de que só o primeiro ato se representou.

Amigos, nenhum. Só uns conhecidos que julgam que simpatizam comigo e teriam talvez pena se um comboio me passasse por cima e o enterro fosse em dia de chuva.

O prêmio natural do meu afastamento da vida foi a incapacidade, que criei nos outros, de sentirem comigo. Em torno a mim há uma auréola de frieza, um halo de gelo que repele os outros. Ainda não consegui não sofrer com a minha solidão. Tão difícil é obter aquela distinção de espírito que permita ao isolamento ser um repouso sem angústia.

Nunca dei crédito à amizade que me mostraram, como o não teria dado ao amor, se mo houvessem mostrado, o que aliás, seria impossível. Embora nunca tivesse ilusões a respeito daqueles que se diziam meus amigos, consegui sempre sofrer desilusões com eles – tão complexo e sutil é o meu destino de sofrer.

Nunca duvidei que todos me traíssem; e pasmei sempre quando me traíram. Quando chegava o que eu esperava, era sempre inesperado para mim.

Como nunca descobri em mim qualidades que atraíssem alguém, nunca pude acreditar que alguém se sentisse atraído por mim. A opinião seria de uma modéstia estulta, se fatos sobre fatos – aqueles inesperados fatos que eu esperava – a não viessem confirmar sempre.

Nem posso conceber que me estimem por compaixão, porque, embora fisicamente desajeitado e inaceitável, não tenho aquele grau de amarfanhamento orgânico com que entre na órbita da compaixão alheia, nem mesmo aquela simpatia que a atrai quando ela não seja patentemente merecida; e para o que em mim merece piedade, não a pode haver, porque nunca há piedade para os aleijados do espírito. De modo que caí naquele centro de gravidade do desdém alheio, em que não me inclino para a simpatia de ninguém.

Toda a minha vida tem sido querer adaptar-me a isto sem lhe sentir demasiadamente a crueza e a abjeção.

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