O Livro do Desassossego - Fernando Pessoa - Parte 3

A vulgaridade é um lar. O quotidiano é materno. Depois de uma incursão larga na grande poesia, aos montes da aspiração sublime, aos penhascos do transcendente e do oculto, sabe melhor que bem, sabe a tudo quanto é quente na vida, regressar à estalagem onde riem os parvos felizes, beber com eles, parvo também, como Deus nos fez, contente do universo que nos foi dado e deixando o mais aos que trepam montanhas para não fazer nada lá no alto.

Nada me comove que se diga, de um homem que tenho por louco ou néscio, que supera a um homem vulgar em muitos casos e conseguimentos da vida. Os epilépticos são, na crise, fortíssimos; os paranóicos raciocinam como poucos homens normais conseguem discorrer; os delirantes com mania religiosa agregam multidões de crentes como poucos (se alguns) demagogos as agregam, e com uma força íntima que estes não logram dar aos seus sequazes. E isto tudo não prova senão que a loucura é loucura. Prefiro a derrota com o conhecimento da beleza das flores que a vitória no meio dos desertos, cheia de cegueira da alma a sós com a sua nulidade separada.


Que de vezes o próprio sonho fútil me deixa um horror à vida interior, uma náusea física dos misticismos e das contemplações. Com que pressa corro de casa, onde assim sonhe, ao escritório; e vejo a cara do Moreira como se chegasse finalmente a um porto. Considerando bem tudo, prefiro o Moreira ao mundo astral; prefiro a realidade à verdade; prefiro a vida, vamos, ao mesmo Deus que a criou. Assim ma deu, assim a viverei. Sonho porque sonho, mas não sofro o insulto próprio de dar aos sonhos outro valor que não o de serem o meu teatro íntimo, como não dou ao vinho, de que todavia me não abstenho, o nome de alimento ou de necessidade da vida.



[201]

Desde antes de manhã cedo, contra o uso solar desta cidade clara, a névoa envolve, num manto leve, que o sol foi crescentemente dourando, as casas múltiplas, os espaços abolidos, os acidentes da terra e das construções. Chegada, porém, a hora alta antes do meio-dia – começou a desfiar-se a bruma branda, e, em hálitos de sombras de véus, a cessar imponderavelmente. Pelas dez horas da manhã só um tênue mau-azular do céu revelava que a névoa fora.

As feições da cidade renasceram do escorregar da máscara do velamento. Como se uma janela se abrisse, o dia já raiado raiou. Houve uma leve mudança nos ruídos de tudo. Apareceram também. Um tom azul insinuou-se até nas pedras das ruas e nas auras impessoais dos transeuntes. O sol era quente, mas ainda umidamente quente. Coava-o invisivelmente a névoa que já não existia.

O despertar de uma cidade, seja entre névoa ou de outro modo, é sempre para mim uma coisa mais enternecedora do que o raiar da aurora sobre os campos. Renasce muito mais, há muito mais que esperar, quando, em vez de só dourar, primeiro de luz obscura, depois de luz úmida, mais tarde de ouro luminoso, as relvas, os relevos dos arbustos, as palmas das mãos das folhas, o sol multiplica os seus possíveis efeitos nas janelas, nos muros, nos telhados – nas janelas tanto, nos muros cores diferentes, nos telhados tons vários – grande manhã diversa a tantas realidades diversas. Uma aurora no campo faz-me bem; a aurora na cidade bem e mal, e por isso me faz mais que bem. Sim, porque a esperança maior que me traz tem, como todas as esperanças, aquele travo longínquo e saudoso de não ser realidade. A manhã do campo existe; a manhã da cidade promete. Uma faz viver; a outra faz pensar. E eu hei-de sempre sentir, como os grandes malditos, que mais vale pensar que viver.



[202]

Atrás dos primeiros menos-calores do estio findo vieram, nos acasos das tardes, certos coloridos mais brandos do céu amplo, certos retoques de brisa fria que anunciavam o outono. Não era ainda o desverde da folhagem, ou o desprenderem-se das folhas, nem aquela vaga angústia que acompanha a nossa sensação da morte externa, porque o há-de ser também a nossa. Era como um cansaço do esforço existente, um vago sono sobrevindo aos últimos gestos de agir. Ah, são tardes de uma tão magoada indiferença, que, antes que comece nas coisas, começa em nós o outono.

Cada outono que vem é mais perto do último outono que teremos, e o mesmo é verdade do verão ou do estio; mas o outono lembra, por o que é, o acabamento de tudo, e no verão ou no estio é fácil, de olhar, que o esqueçamos. Não é ainda o outono, não está ainda no ar o amarelo das folhas caídas ou a tristeza úmida do tempo que vai ser inverno mais tarde. Mas há um resquício de tristeza antecipada, uma mágoa vestida para a viagem, no sentimento em que somos vagamente atentos à difusão colorida das coisas, ao outro tom do vento, ao sossego mais velho que se alastra, se a noite cai, pela presença inevitável do universo.

Sim, passaremos todos, passaremos tudo. Nada ficará do que usou sentimentos e luvas, do que falou da morte e da política local. Como é a mesma luz que ilumina as faces dos santos e as polainas dos transeuntes, assim será a mesma falta de luz que deixará no escuro o nada que ficar de uns terem sido santos e outros usadores de polainas.

No vasto redemoinho, como o das folhas secas, em que jaz indolentemente o mundo inteiro, tanto faz os remos como os vestidos das costureiras, e as tranças das crianças louras vão no mesmo giro mortal que os cetros que figuraram impérios. Tudo é nada, e no átrio do Invisível, cuja porta aberta mostra apenas, defronte, uma porta fechada, bailam, servas desse vento que as remexe sem mãos, todas as coisas, pequenas e grandes, que formaram, para nós e em nós, o sistema sentido do universo. Tudo é sombra e pó mexido, nem há voz senão a do som que faz o que [o] vento ergue e arrasta, nem silêncio senão do que o vento deixa. Uns, folhas leves, menos presas de terra por mais leves, vão altas do rodopio do Átrio e caem mais longe que o círculo dos pesados. Outros, invisíveis quase, pó igual, diferente só se o víssemos de perto, faz cama a si mesmo no redemoinho. Outros ainda, miniaturas de troncos, são arrastados à roda e cessam aqui e ali. Um dia, no fim do conhecimento das coisas, abrir-se-á a porta do fundo e tudo o que fomos – lixo de estrelas e de almas – será varrido para fora da casa, para que o que há recomece.

Meu coração dói-me como um corpo estranho. Meu cérebro dorme tudo quanto sinto. Sim, é o princípio do outono que traz ao ar e à minha alma aquela luz sem sorriso que vai orlando de amarelo morto o arredondamento confuso das poucas nuvens do poente. Sim, é o princípio do outono, e o conhecimento claro, na hora límpida, da insuficiência anônima de tudo. O outono, sim, o outono, o que há ou o que vai haver, e o cansaço antecipado de todos os gestos, a desilusão antecipada de todos os sonhos. Que posso eu esperar e de quê? Já, no que penso de mim, vou entre as folhas e os pós do átrio, na órbita sem sentido de coisa nenhuma, fazendo som de vida nas lajes limpas que um sol angular doura de fim não sei onde.

Tudo quanto pensei, tudo quanto sonhei, tudo quanto fiz ou não fiz – tudo isso irá no outono, como os fósforos gastos que juncam o chão em diversos sentidos, ou os papéis amarrotados em bolas falsas, ou os grandes impérios, as religiões todas, as filosofias com que brincaram, fazendo-as, as crianças sonolentas do abismo. Tudo quanto foi minha alma, desde tudo a que aspirei à casa vulgar em que moro, desde os deuses que tive ao patrão Vasques que também tive, tudo vai no outono, tudo no outono, na ternura indiferente do outono. Tudo no outono, sim, tudo no outono...



[203]

Nem se sabe se o que acaba do dia é conosco que finda em mágoa inútil, ou se o que somos é falso entre penumbras, e não há mais que o grande silêncio sem patos bravos que cai sobre os lagos onde os juncos erguem a sua hirteza que desfalece. Não se sabe nada, nem a memória resta das histórias de infância, algas, nem a carícia tarda dos céus futuros, brisa em que a imprecisão se abre lentamente em estrelas. A lâmpada votiva oscila incerta no templo onde já ninguém anda, estagnam os tanques ao sol das quintas desertas, não se conhece o nome inscrito no tronco outrora, e os privilégios dos ignotos foram, como papel mal rasgado, pelas estradas cheias de um grande vento, aos acasos dos obstáculos que os pararam. Outros se debruçarão da mesma janela que os outros; dormem os que se esqueceram da má sombra, saudosos do sol que não tinham; e eu mesmo, que ouso sem gestos, acabarei sem remorsos, entre juncos ensopados, enlameado do rio próximo e do cansaço frouxo, sob grandes outonos de tarde, em confins impossíveis. E através de tudo, como um silvo de angústia nua, sentirei a minha alma por detrás do devaneio – uivo fundo e puro, inútil no escuro do mundo.



[204]

Nuvens... Hoje tenho consciência do céu, pois há dias em que o não olho mas sinto, vivendo na cidade e não na natureza que a inclui. Nuvens... São elas hoje a principal realidade, e preocupam-me como se o velar do céu fosse um dos grandes perigos do meu destino. Nuvens... Passam da barra para o Castelo, de ocidente para oriente, num tumulto disperso e despido, branco às vezes, se vão esfarrapadas na vanguarda de não sei quê; meio-negro outras, se, mais lentas, tardam em ser varridas pelo vento audível; negras de um branco sujo, se, como se quisessem ficar, enegrecem mais da vinda que da sombra o que as ruas abrem de falso espaço entre as linhas fechadoras da casaria.

Nuvens... Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira. Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstrata e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu nada também. Nuvens... Que desassossego se sinto, que desconforto se penso, que inutilidade se quero! Nuvens... Estão passando sempre, umas muito grandes, parecendo, porque as casas não deixam ver se são menos grandes que parecem, que vão a tomar todo o céu; outras de tamanho incerto, podendo ser duas juntas ou uma que se vai partir em duas, sem sentido no ar alto contra o céu fatigado; outras ainda, pequenas, parecendo brinquedos de poderosas coisas, bolas irregulares de um jogo absurdo, só para um lado, num grande isolamento, frias.

Nuvens... Interrogo-me e desconheço-me. Nada tenho feito de útil nem farei de justificável. Tenho gasto a parte da vida que não perdi em interpretar confusamente coisa nenhuma, fazendo versos em prosa às sensações intransmissíveis com que torno meu o universo incógnito. Estou farto de mim, objetiva e subjetivamente. Estou farto de tudo, e do tudo de tudo. Nuvens... São tudo, desmanchamentos do alto, coisas hoje só elas reais entre a terra nula e o céu que não existe; farrapos indescritíveis do tédio que lhes imponho; névoa condensada em ameaças de cor ausente; algodões de rama sujos de um hospital sem paredes. Nuvens... São como eu, uma passagem desfeita entre o céu e a terra, ao sabor de um impulso invisível, trovejando ou não trovejando, alegrando brancas ou escurecendo negras, ficções do intervalo e do descaminho, longe do ruído da terra e sem ter o silêncio do céu. Nuvens... Continuam passando, continuam sempre passando, passarão sempre continuando, num enrolamento descontínuo de meadas baças, num alongamento difuso de falso céu desfeito.



[205]

Fluido, o abandono do dia finda entre púrpuras exaustas. Ninguém me dirá quem sou, nem saberá quem fui. Desci da montanha ignorada ao vale que ignoraria, e meus passos foram, na tarde lenta, vestígios deixados nas clareiras da floresta. Todos quantos amei me esqueceram na sombra. Ninguém soube do último barco. No correio não havia notícia da carta que ninguém haveria de escrever.

Tudo, porém, era falso. Não contaram histórias que outros houvessem contado, nem se sabe ao certo do que partiu outrora, na esperança do embarque falso, filho da bruma futura e da indecisão por vir. Tenho nome entre os que tardam, e esse nome é sombra como tudo.



[206]

Floresta

Mas ah, nem a alcova era certa – era a alcova velha da minha infância perdida! Como um nevoeiro, afastou-se, atravessou materialmente as paredes brancas do meu quarto real, e este emergiu nítido e menor da sombra, como a vida e o dia, como o passo do carroceiro e o som vago do chicote que põem músculos de se levantar no corpo deitado da besta sonolenta.



[207]

Quantas coisas, que temos por certas ou justas, não são mais que os vestígios dos nossos sonhos, o sonambulismo da nossa incompreensão!

Sabe acaso alguém o que é certo ou justo? Quantas coisas, que temos por belas, não são mais que o uso da época, a ficção do lugar e da hora?

Quantas coisas, que temos por nossas, não são mais que aquilo de que somos perfeitos espelhos, ou invólucros transparentes, alheios no sangue à raça da sua natureza!

Quanto mais medito na capacidade, que temos, de nos enganar, mais se me esvai entre os dedos lassos a areia fina das certezas desfeitas. E todo o mundo me surge, em momentos em que a meditação se me torna um sentimento, e com isso a mente se me obnubila, como uma névoa feita de sombra, um crepúsculo dos ângulos e das arestas, uma ficção do interlúdio, uma demora da antemanhã. Tudo se me transforma em um absoluto morto de ele mesmo, numa estagnação de pormenores. E os mesmos sentidos, com que transfiro a meditação para esquecê-la, são uma espécie de sono, qualquer coisa de remoto e de sequaz, interstício, diferença, acaso das sombras e da confusão.

Nesses momentos, em que compreenderia os ascetas e os retirados, se houvesse em mim poder de compreender os que se empenham em qualquer esforço com fins absolutos, ou em qualquer crença capaz de produzir um esforço, eu criaria, se pudesse, toda uma estética da desconsolação, uma rítmica íntima de balada de berço, coada pelas ternuras da noite em grandes afastamentos de outros lares.

Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de porque se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma coisa e o outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão.

Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.



[208]

Assim como, quer o saibamos quer não, temos todos uma metafísica, assim também, quer o queiramos quer não, temos todos uma moral. Tenho uma moral muito simples – não fazer a ninguém nem mal nem bem. Não fazer a ninguém mal, porque não só reconheço nos outros o mesmo direito que julgo que me cabe, de que não me incomodem, mas acho que bastam os males naturais para mal que tenha de haver no mundo. Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros uma amabilidade de viagem. Não fazer bem, porque não sei o que é o bem, nem se o faço quando julgo que o faço. Sei eu que males produzo se dou esmola? Sei eu que males produzo se educo ou instruo? Na dúvida, abstenho-me. E acho, ainda, que auxiliar ou esclarecer é, em certo modo, fazer o mal de intervir na vida alheia. A bondade é um capricho temperamental: não temos o direito de fazer os outros vítimas de nossos caprichos, ainda que de humanidade ou de ternura. Os benefícios são coisas que se infligem; por isso os abomino friamente.

Se não faço o bem, por moral, também não exijo que mo façam. Se adoeço, o que mais me pesa é que obrigo alguém a tratar-me, coisa que me repugnaria de fazer a outrem. Nunca visitei um amigo doente. Sempre que, tendo eu adoecido, me visitaram, sofri cada visita como um incômodo, um insulto, uma violação injustificável da minha intimidade decisiva. Não gosto que me dêem coisas; parecem com isso obrigar-me a que as dê também – aos mesmos ou a outros, seja a quem for.

Sou altamente sociável de um modo altamente negativo. Sou a inofensividade encarnada. Mas não sou mais do que isso, não quero ser mais do que isso, não posso ser mais do que isso. Tenho para com tudo que existe uma ternura visual, um carinho da inteligência – nada no coração. Não tenho fé em nada, esperança de nada, caridade para nada. Abomino com náusea e pasmo os sinceros de todas as sinceridades e os místicos de todos os misticismos ou, antes e melhor, as sinceridades de todos os sinceros e os misticismos de todos os místicos. Essa náusea é quase física quando esses misticismos são ativos, quando pretendem convencer a inteligência alheia, ou mover a vontade alheia, encontrar a verdade ou reformar o mundo.

Considero-me feliz por não ter já parentes. Não me vejo assim na obrigação, que inevitavelmente me pesaria, de ter que amar alguém. Não tenho saudades senão literariamente. Lembro a minha infância com lágrimas, mas são lágrimas rítmicas, onde já se prepara a prosa. Lembro-a como uma coisa externa e através de coisas externas; lembro só as coisas externas. Não é sossego dos serões de província que me enternece da infância que vivi neles, é a disposição da mesa para o chá, são os vultos dos móveis em torno da casa, são as caras e os gestos físicos das pessoas. É de quadros que tenho saudades. Por isso, tanto me enternece a minha infância como a de outrem: são ambas, no passado que não sei o que é, fenômenos puramente visuais, que sinto com a atenção literária. Enterneço-me, sim, mas não é porque lembro, mas porque vejo.

Nunca amei ninguém. O mais que tenho amado são sensações minhas – estados da visualidade consciente, impressões da audição desperta, perfumes que são uma maneira de a humildade do mundo externo falar comigo, dizer-me coisas do passado (tão fácil de lembrar pelos cheiros) –, isto é, de me darem mais realidade, mais emoção, que o simples pão a cozer lá dentro na padaria funda, como naquela tarde longínqua em que vinha do enterro do meu tio que me amara tanto e havia em mim vagamente a ternura de um alívio, não sei bem de quê.

É esta a minha moral, ou a minha metafísica, ou eu: Transeunte de tudo – até de minha própria alma –, não pertenço a nada, não desejo nada, não sou nada – centro abstrato de sensações impessoais, espelho caído sentiente virado para a variedade do mundo. Com isto, não sei se sou feliz ou infeliz; nem me importa.



[209]

Colaborar, ligar-se, agir com outros, é um impulso metafisicamente mórbido. A alma que é dada ao indivíduo, não deve ser emprestada às suas relações com os outros. O fato divino de existir não deve ser entregue ao fato satânico de coexistir.

Ao agir com outros perco, ao menos, uma coisa – que é agir só.

Quando me entrego, embora pareça que me expando, limito-me. Conviver é morrer. Para mim, só a minha autoconsciência é real; os outros são fenômenos incertos nessa consciência, e a que seria mórbido emprestar uma realidade muito verdadeira.

A criança, que quer por força fazer a sua vontade, data de mais perto de Deus, porque quer existir.

A nossa vida de adultos reduz-se a dar esmolas aos outros. Vivemos todos de esmola alheia. Desperdiçamos a nossa personalidade em orgias de coexistência.

Cada palavra falada nos trai. A única comunicação tolerável é a palavra escrita, porque não é uma pedra em uma ponte entre almas, mas um raio de uma luz entre astros.

Explicar é descrer. Toda a filosofia é uma diplomacia sob a espécie da eternidade [...], como a diplomacia, uma coisa substancialmente falsa, que existe não como coisa, mas inteira e absolutamente para um fim.

O único destino nobre de um escritor que se publica é não ter uma celebridade que mereça. Mas o verdadeiro destino nobre é o do escritor que não se publica. Não digo que não escreva, porque esse não é escritor. Digo do que por natureza escreve, e por condição espiritual não oferece o que escreve.

Escrever é objetivar sonhos, é criar um mundo exterior para prêmio [?] evidente da nossa índole de criadores. Publicar é dar esse mundo exterior aos outros; mas para quê, se o mundo exterior comum a nós e a eles é o “mundo exterior” real, o da matéria, o mundo visível e tangível? Que têm os outros com o universo que há em mim?



[210]

Estética do desalento

Publicar-se – socialização de si próprio. Que ignóbil necessidade! Mas ainda assim que afastada de um ato – o editor ganha, o tipógrafo produz. O mérito da incoerência ao menos.

Uma das preocupações maiores do homem, atingida a idade lúcida, é talhar-se, agente e pensante, à imagem e semelhança do seu ideal. Posto que nenhum ideal encarna tanto como o da inércia toda a lógica da nossa aristocracia de alma ante as ruidosidades e exteriores modernas, o Inerte, o Inativo deve ser o nosso Ideal. Fútil? Talvez. Mas isso só preocupará como um mal aqueles para quem a futilidade é um atrativo.



[211]

O entusiasmo é uma grosseria.

A expressão do entusiasmo é, mais do que tudo, uma violação dos direitos da nossa insinceridade.

Nunca sabemos quando somos sinceros. Talvez nunca o sejamos. E mesmo que sejamos sinceros hoje, amanhã podemos sê-lo por coisa contrária.

Por mim não tive convicções. Tive sempre impressões. Nunca poderia odiar uma terra em que eu houvesse visto um poente escandaloso.

Exteriorizar impressões é mais persuadirmo-nos de que as temos do que termo-las.



[212]

Ter opiniões é estar vendido a si mesmo. Não ter opiniões é existir. Ter todas as opiniões é ser poeta.



[213]

Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me evapora. Continuamente sinto que fui outro, que senti outro, que pensei outro. Aquilo a que assisto é um espetáculo com outro cenário. E aquilo a que assisto sou eu.

Encontro às vezes, na confusão vulgar das minhas gavetas literárias, papéis escritos por mim há dez anos, há quinze anos, há mais anos talvez. E muitos deles me parecem de um estranho; desreconheço-me neles. Houve quem os escrevesse, e fui eu. Senti-os eu, mas foi como em outra vida, de que houvesse agora despertado como de um sono alheio.

É freqüente eu encontrar coisas escritas por mim quando ainda muito jovem – trechos dos dezessete anos, trechos dos vinte anos. E alguns têm um poder de expressão que me não lembro de poder ter tido nessa altura da vida. Há em certas frases, em vários períodos, de coisas escritas a poucos passos da minha adolescência, que me parecem produto de tal qual sou agora, educado por anos e por coisas. Reconheço que sou o mesmo que era. E, tendo sentido que estou hoje num progresso grande do que fui, pergunto onde está o progresso se então era o mesmo que hoje sou.

Há nisto um mistério que me desvirtua e me oprime.

Ainda há dias sofri uma impressão espantosa com um breve escrito do meu passado. Lembro-me perfeitamente de que o meu escrúpulo, pelo menos relativo, pela linguagem data de há poucos anos. Encontrei numa gaveta um escrito meu, muito mais antigo, em que esse mesmo escrúpulo estava fortemente acentuado. Não me compreendi no passado positivamente. Como avancei para o que já era? Como me conheci hoje o que me desconheci ontem? E tudo se me confunde num labirinto onde, comigo, me extravio de mim.

Devaneio com o pensamento, e estou certo que isto que escrevo já o escrevi. Recordo. E pergunto ao que em mim presume de ser se não haverá no platonismo das sensações outra anamnese mais inclinada, outra recordação de uma vida anterior que seja apenas desta vida...

Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?



[214]

Outra vez encontrei um trecho meu, escrito em francês, sobre o qual haviam passado já quinze anos. Nunca estive em França, nunca lidei de perto com franceses, nunca tive exercício, portanto, daquela língua, de que me houvesse desabituado. Leio hoje tanto francês como sempre li. Sou mais velho, sou mais prático de pensamento: deverei ter progredido. E esse trecho do meu passado longínquo tem uma segurança no uso do francês que eu hoje não possuo; o estilo é fluido, como hoje o não poderei ter naquele idioma; há trechos inteiros, frases completas, formas e modos de expressão que acentuam um domínio daquela língua de que me extraviei sem que me lembrasse que o tinha. Como se explica isto? A quem me substituí dentro de mim?

Bem sei que é fácil formar uma teoria da fluidez das coisas e das almas, compreender que somos um decurso interior de vida, imaginar que o que somos é uma quantidade grande, que passamos por nós, que fomos muitos... Mas aqui há outra coisa que não o mero decurso da personalidade entre as próprias margens: há o outro absoluto, um ser alheio que foi meu. Que perdesse, com o acréscimo da idade, a imaginação, a emoção, um tipo de inteligência, um modo de sentimento – tudo isso, fazendo-me pena, me não faria pasmo. Mas a que assisto quando me leio como a um estranho? A que beira estou se me vejo no fundo?

Outras vezes encontro trechos que me não lembro de ter escrito – o que é pouco para pasmar –, mas que nem me lembro de poder ter escrito – o que me apavora. Certas frases são de outra mentalidade. E como se encontrasse um retrato antigo, sem dúvida meu, com uma estatura diferente, com umas feições incógnitas – mas indiscutivelmente meu, pavorosamente eu.



[215]

Tenho as opiniões mais desencontradas, as crenças mais diversas. É que nunca penso, nem falo, nem ajo... Pensa, fala, age por mim sempre um sonho qualquer meu, em que me encarno de momento. Vou a falar e falo eu-outro. De meu, só sinto uma incapacidade enorme, um vácuo imenso, uma incompetência ante tudo quanto é a vida. Não sei os gestos a ato nenhum real, nunca aprendi a existir.

Tudo que quero consigo, logo que seja dentro de mim.

Quero que a leitura deste livro vos deixe a impressão de tédio continuado em pesadelo voluptuoso.

O que antes era moral, é estético hoje para nós... O que era social é hoje individual...

Para quê olhar para os crepúsculos se tenho em mim milhares de crepúsculos diversos – alguns dos quais que o não são – e se, além de os olhar dentro de mim, eu próprio os sou, por dentro?



[216]

O poente está espalhado pelas nuvens soltas separadas que o céu todo tem. Reflexos de todas as cores, reflexos brandos, enchem as diversidades do ar alto, bóiam ausentes nas grandes mágoas da altura. Pelos cimos dos telhados erguidos, meio-cor, meio-sombras, os últimos raios lentos do sol indo-se tomam formas de cor que nem são suas nem das coisas em que pousam. Há um grande sossego acima do nível ruidoso da cidade que vai também sossegando. Tudo respira para além da cor e do som, num hausto fundo e mudo.

Nas casas coloridas que o sol não vê, as cores começam a ter tons de cinzento delas. Há frio nas diversidades dessas cores. Dorme uma pequena inquietação nos vales falsos das ruas. Dorme e sossega. E pouco a pouco, nas mais baixas das nuvens altas, começam os reflexos a ser de sombra; só naquela pequena nuvem, que paira águia branca acima de tudo, o sol conserva, de longe, o seu ouro rindo.

Tudo quanto tenho buscado na vida, eu mesmo o deixei por buscar. Sou como alguém que procure distraidamente o que, no sonho entre a busca, esqueceu já o que era. Torna-se mais real que a coisa buscada ausente o gesto real das mãos visíveis que buscam, revolvendo, deslocando, assentando, e existem brancas e longas, com cinco dedos cada uma, exatamente.

Tudo quanto tenho tido é como este céu alto e diversamente o mesmo, farrapos de nada tocados de uma luz distante, fragmentos de falsa vida que a morte doura de longe, com seu sorriso triste de verdade inteira. Tudo quanto tenho tido, sim, tem sido o não ter sabido buscar, senhor feudal de pântanos à tarde, príncipe deserto de uma cidade de tumultos vazios.

Tudo quanto sou, ou quanto fui, ou quanto penso do que sou ou fui, tudo isso perde de repente – nestes meus pensamentos e na perda súbita de luz da nuvem alta – o segredo, a verdade, a ventura talvez, que houvesse em não sei quê que tem por baixo a vida. Tudo isso, como um sol que falta, é que me resta, e sobre os telhados altos, diversamente, a luz deixa escorregar as suas mãos de queda, e sai à vista, na unidade dos telhados, a sombra íntima de tudo.

Vago pingo trêmulo, clareia pequena ao longe a primeira estrela.



[217]

Todos os movimentos da sensibilidade, por agradáveis que sejam, são sempre interrupções de um estado, que não sei em que consiste, que é a vida íntima dessa própria sensibilidade. Não só as grandes preocupações, que nos distraem de nós, mas até as pequenas arrelias, perturbam uma quietação a que todos, sem saber, aspiramos.

Vivemos quase sempre fora de nós, e a mesma vida é uma perpétua dispersão. Porém, é para nós que tendemos, como para um centro em torno do qual fazemos, como os planetas, elipses absurdas e distantes.



[218]

Sou mais velho que o Tempo e que o Espaço, porque sou consciente. As coisas derivam de mim; a Natureza inteira é a primogênita da minha sensação.

Busco – não encontro. Quero, e não posso.

Sem mim, o sol nasce e se apaga; sem mim a chuva cai e o vento geme. Não são por mim as estações, nem o curso dos meses, nem a passagem das horas.

Dono do mundo em mim, como de terras que não posso trazer comigo.



[219]

Esse lugar ativo de sensações, a minha alma, passeia às vezes comigo conscientemente pelas ruas noturnas da cidade, nas horas tedientas em que me sinto um sonho entre sonhos de outra espécie, à luz do gás, pelo ruído transitório dos veículos.

Ao mesmo tempo que em corpo me embrenho por vielas e sub-ruas, torna-se-me complexa a alma em labirintos de sensação. Tudo quanto de aflitivamente pode dar a noção de irrealidade e de existência fingida, tudo quanto soletra, sem ser ao raciocínio, mas concretamente, o quanto é mais do que oco o lugar do universo, desenrola-se-me então objetivamente no espírito apartado. Angustia-me, não sei porquê, essa extensão objetiva de ruas estreitas, e largas, essa consecução de candeeiros, árvores, janelas iluminadas e escuras, portões fechados e abertos, vultos heterogeneamente noturnos que a minha vista curta, no que de maior imprecisão lhes dá, ajuda a tornar subjetivamente monstruosos, incompreensíveis e irreais.

Fragmentos verbais de inveja, de luxúria, de trivialidade vão de embate ao meu sentido de ouvir. Sussurrados murmúrios ondulam para a minha consciência.

Pouco a pouco vou perdendo a consciência nítida de que existo coextensamente com isto tudo, de que realmente me movo, ouvindo e pouco vendo, entre sombras que representam entes e lugares onde entes o são. Torna-se-me gradualmente, escuramente, indistintamente incompreensível como é que isto tudo pode ser em face do tempo eterno e do espaço infinito.

Passo aqui, por passiva associação de idéias, a pensar nos homens que desse espaço e desse tempo tiveram a consciência analisadora e compreendedoramente perdida. Sente-se-me grotesca a idéia de que entre homens como estes, em noites sem dúvida como esta, em cidades decerto não essencialmente diversas da em que penso, os Platões, os Scotus Erigenas, os Kants, os Hegels como que se esqueceram disto tudo, como que se tornaram diversos desta gente. E eram da mesma humanidade.

Eu mesmo que passeio aqui com estes pensamentos, com que horrorosa nitidez, ao pensá-los, me sinto distante, alheio, confuso e

Acabo a minha solitária peregrinação. Um vasto silêncio, que sons miúdos não alteram no como é sentido, como que me assalta e subjuga. Um cansaço imenso das meras coisas, do simples estar aqui, do encontrar-me deste modo pesa-me do espírito ao corpo. Quase que me surpreendo a querer gritar, de afundando-me que me sinto em um oceano de uma imensidão que nada tem com a infinidade do espaço nem com a eternidade do tempo, nem com qualquer coisa suscetível de medida e nome. Nestes momentos de terror supremamente silencioso não sei o que sou materialmente, o que costumo fazer, o que me é usual querer, sentir e pensar. Sinto-me perdido de mim mesmo, fora do meu alcance. A ânsia moral de lutar, o esforço intelectual para sistematizar e compreender, a irrequieta aspiração artista a produzir uma coisa que ora não compreendo, mas que me lembro de compreender, e a que chamo beleza, tudo isto se me some do instinto do real, tudo isto se me afigura nem digno de ser pensado inútil, vazio e longínquo. Sinto-me apenas um vácuo, uma ilusão de uma alma, um lugar de um ser, uma escuridão de consciência onde estranho inseto procurasse em vão sequer a cálida lembrança de uma luz.



[220]

Intervalo doloroso

Sonhar, para quê?

Que fiz de mim? Nada.

se espiritualizar em Noite, se

Estátua Interior sem contornos, Sonho Exterior sem ser-sonhado.



[221]

Tenho sido sempre um sonhador irônico, infiel às promessas interiores.

Gozei sempre, como outro e estrangeiro, as derrotas dos meus devaneios, assistente casual ao que pensei ser. Nunca dei crença àquilo em que acreditei. Enchi as mãos de areia, chamei-lhe ouro, e abri as mãos dela toda, escorrente. A frase fora a única verdade. Com a frase dita estava tudo feito; o mais era a areia que sempre fora.

Se não fosse o sonhar sempre, o viver num perpétuo alheamento, poderia, de bom grado, chamar-me um realista, isto é, um indivíduo para quem o mundo exterior é uma nação independente. Mas prefiro não me dar nome, ser o que sou com uma certa obscuridade e ter comigo a malícia de me não saber prever.

Tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, pois, não sendo mais, nem querendo ser mais, que um espectador de mim mesmo, tenho que ter o melhor espetáculo que posso. Assim me construo a ouro e sedas, em salas supostas, palco falso, cenário antigo, sonho criado entre jogos de luzes brandas e músicas – visíveis.

Guardo, íntima, como a memória de um beijo grato, a lembrança de infância de um teatro em que o cenário azulado e lunar representava o terraço de um palácio impossível. Havia, pintado também, um parque vasto em roda, e gastei a alma em viver como real aquilo tudo. A música, que soava branda nessa ocasião mental da minha experiência da vida, trazia para real de febre esse cenário dado.

O cenário era definitivamente azulado e lunar. No palco não me lembro quem aparecia, mas a peça que ponho na paisagem lembrada sai-me hoje dos versos de Verlaine e de Pessanha; não era a que deslembro, passada no palco vivo aquém daquela realidade de azul música. Era minha e fluida, a mascarada imensa e lunar, o interlúdio de prata e azul findo.

Depois veio a vida. Nessa noite levaram-me a cear ao Leão. Tenho ainda a memória dos bifes no paladar da saudade – bifes, sei ou suponho, como hoje ninguém faz ou eu não como. E tudo se me mistura – infância, vivida a distância, comida saborosa de noite, cenário lunar, Verlaine futuro e eu presente – numa diagonal difusas, num espaço falso entre o que fui e o que sou.



[222]

Como nos dias em que a trovoada se prepara e os ruídos da rua falam alto com uma voz solitária.

A rua franziu-se de luz intensa e pálida, e o negrume baço tremeu, de leste a oeste do mundo, com um estrondo feito de escangalhamentos ecoantes... A tristeza dura da chuva bruta piorou o ar negro de intensidade feia. Frio, morno, quente – tudo ao mesmo tempo –, o ar em toda a parte era errado. E, a seguir, pela ampla sala uma cunha de luz metálica abriu brecha nos repousos dos corpos humanos, e, com o sobressalto gelado, um pedregulho de som bateu em toda a parte, esfacelando-se com silêncio duro. O som da chuva diminui como uma voz de menos peso. O ruído das ruas diminui angustiantemente. Nova luz, de um amarelado rápido, tolda o negrume surdo, mas houve agora uma respiração possível antes que o punho do som trêmulo ecoasse súbito doutro ponto; como uma despedida zangada, a trovoada começava a aqui não estar com um sussurro arrastado e findo, sem luz na luz que aumentava, o tremor da trovoada acalmava nos largos longes – rodava em Almada...

Uma súbita luz formidável estilhaçou-se. Tudo estacou. Os corações pararam um momento. Todos são pessoas muito sensíveis. O silêncio aterra como se houvera morte. O som da chuva que aumenta alivia como lágrimas de tudo. Há chumbo.



[223]

O gládio de um relâmpago frouxo volteou sombriamente no quarto largo.

E o som a vir, suspenso um hausto amplo, retumbou, emigrando profundo.

O som da chuva chorou alto, como carpideiras no intervalo das falas. Os pequenos sons destacaram-se cá dentro, inquietos.



[224]

... esse episódio da imaginação a que chamamos realidade.

Há dois dias que chove e que cai do céu cinzento e frio uma certa chuva, da cor que tem, que aflige a alma. Há dois dias... Estou triste de sentir, e reflito-o à janela ao som da água que pinga e da chuva que cai. Tenho o coração opresso e as recordações transformadas em angústias.

Sem sono, nem razão para o ter, há em mim uma grande vontade de dormir. Outrora, quando eu era criança e feliz, vivia numa casa do pátio ao lado a voz de um papagaio verde a cores. Nunca, nos dias de chuva, se lhe entristecia o dizer, e clamava, sem dúvida do abrigo, um qualquer sentimento constante, que pairava na tristeza como um gramofone antecipado.

Pensei neste papagaio porque estou triste e a infância longínqua o lembra? Não, pensei nele realmente, porque do pátio fronteiro de agora, uma voz de papagaio grita arrevesadamente.

Tudo se me confunde. Quando julgo que recordo, é outra coisa que penso; se vejo, ignoro, e quando me distraio, nitidamente vejo.

Viro as costas à janela cinzenta, de vidros frios às mãos que lhes tocam. E levo comigo, por um sortilégio da penumbra, de repente, o interior da casa antiga, fora da qual, no pátio ao lado, o papagaio gritava; e os meus olhos adormecem-se-me de toda a irreparabilidade de ter efetivamente vivido.



[225]

Sim, é o poente. Chego à foz da Rua da Alfândega, vagaroso e disperso, e, ao clarear-me o Terreiro do Paço, vejo, nítido, o sem sol do céu ocidental. Esse céu é de um azul esverdeado para cinzento branco, onde, do lado esquerdo, sobre os montes da outra margem, se agacha, amontoada, uma névoa acastanhada de cor-de-rosa morto. Há uma grande paz que não tenho dispersa friamente no ar outonal abstrato. Sofro de não ter o prazer vago de supor que ela existe. Mas, na realidade, não há paz nem falta de paz: céu apenas, céu de todas as cores que desmaiam – azul branco, verde ainda azulado, cinzento pálido entre verde e azul, vagos tons remotos de cores de nuvens que o não são, amareladamente escurecidas de encarnado findo. E tudo isto é uma visão que se extingue no mesmo momento em que é tida, um intervalo entre nada e nada, alado, posto alto, em tonalidades de céu e mágoa, prolixo e indefinido.

Sinto e esqueço. Uma saudade, que é a de toda a gente por tudo, invade-me como um ópio do ar frio. Há em mim um êxtase de ver, íntimo e postiço.

Para os lados da barra, onde o ter cessado o sol cada vez mais se acaba, a luz extingue-se em branco lívido que se azula de esverdeado frio. Há no ar um torpor do que se não consegue nunca. Cala alto a paisagem do céu.

Nesta hora, em que sinto até transbordar, quisera ter a malícia inteira de dizer, o capricho livre de um estilo por destino. Mas não, só o céu alto é tudo, remoto, abolindo-se, e a emoção que tenho, e que é tantas, juntas e confusas, não é mais que o reflexo desse céu nulo num lago em mim – lago recluso entre rochedos hirtos, calado, olhar de morto, em que a altura se contempla esquecida.

Tantas vezes, tantas, como agora, me tem pesado sentir que sinto – sentir como angústia só por ser sentir, a inquietação de estar aqui, a saudade de outra coisa que se não conheceu, o poente de todas as emoções, amarelecer-me esbatido para tristeza cinzenta na minha consciência externa de mim.

Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: e aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia como um diamante possível numa cova a que se não pode descer. E todo o peso e toda a mágoa deste universo real e impossível, deste céu estandarte de um exército incógnito, destes tons que vão empalidecendo pelo ar fictício, de onde o crescente imaginário da lua emerge numa brancura elétrica parada, recortado a longínquo e a insensível.

É toda a falta de um Deus verdadeiro que é o cadáver vácuo do céu alto e da alma fechada. Cárcere infinito – porque és infinito, não se pode fugir de ti!



[226]

Com que luxúria e transcendente eu, às vezes, passeando de noite nas ruas da cidade e fitando, de dentro da alma, as linhas dos edifícios, as diferenças das construções, as minuciosidades da sua arquitetura, a luz em algumas janelas, os vasos com plantas fazendo irregularidades nas sacadas – contemplando tudo isto, dizia, com que gozo de intuição me subia aos lábios da consciência este grito de redenção: mas nada disto é real!



[227]

Prefiro a prosa ao verso, como modo de arte, por duas razões, das quais a primeira, que é minha, é que não tenho escolha, pois sou incapaz de escrever em verso. A segunda, porém, é de todos, e não é – creio bem – uma sombra ou disfarce da primeira. Vale pois a pena que eu a esfie, porque toca no sentido íntimo de toda a valia da arte.

Considero o verso como uma coisa intermédia, uma passagem da música para a prosa. Como a música, o verso é limitado por leis rítmicas, que, ainda que não sejam as leis rígidas do verso regular, existem todavia como resguardos, coações, dispositivos automáticos de opressão e castigo. Na prosa falamos livres. Podemos incluir ritmos musicais, e contudo pensar. Podemos incluir ritmos poéticos, e contudo estar fora deles. Um ritmo ocasional de verso não estorva a prosa; um ritmo ocasional de prosa faz tropeçar o verso.

Na prosa se engloba toda a arte – em parte porque na palavra se contém todo o mundo, em parte porque na palavra livre se contém toda a possibilidade de o dizer e pensar. Na prosa damos tudo, por transposição: a cor e a forma, que a pintura não pode dar senão diretamente, em elas mesmas, sem dimensão íntima; o ritmo, que a música não pode dar senão diretamente, nele mesmo, sem corpo formal, nem aquele segundo corpo que é a idéia; a estrutura, que o arquiteto tem que formar de coisas duras, dadas, externas, e nós erguemos em ritmos, em indecisões, em decursos e fluidezas; a realidade, que o escultor tem que deixar no mundo, sem aura nem transubstanciação; a poesia, enfim, em que o poeta, como o iniciado em uma ordem oculta, é servo, ainda que voluntário, de um grau e de um ritual.

Creio bem que, em um mundo civilizado perfeito, não haveria outra arte que não a prosa. Deixaríamos os poentes aos mesmos poentes, cuidando apenas, em arte, de os compreender verbalmente, assim os transmitindo em música inteligível de cor. Não faríamos escultura dos corpos, que guardariam próprios, vistos e tocados, o seu relevo móbil e o seu morno suave. Faríamos casas só para morar nelas, que é, enfim, o para que elas são. A poesia ficaria para as crianças se aproximarem da prosa futura; que a poesia é, por certo, qualquer coisa de infantil, de mnemônico, de auxiliar e inicial.

Até as artes menores, ou as que assim podemos chamar, se refletem, múrmuras, na prosa. Há prosa que dança, que canta, que se declama a si mesma. Há ritmos verbais que são bailados, em que a idéia se desnuda sinuosamente, numa sensualidade translúcida e perfeita. E há também na prosa sutilezas convulsas em que um grande ator, o Verbo, transmuda ritmicamente em sua substância corpórea o mistério impalpável do universo.



[228]

Tudo se penetra. A leitura dos clássicos, que não falam de poentes, tem-me tornado inteligíveis muitos poentes, em todas as suas cores. Há uma relação entre a competência sintática, pela qual se distingue a valia dos seres, dos sons, e das formas, e a capacidade de compreender quando o azul do céu é realmente verde, e que parte de amarelo existe no verde azul do céu.

No fundo é a mesma coisa – a capacidade de distinguir e de sutilizar. Sem sintaxe não há emoção duradoura. A imortalidade é uma função dos gramáticos.



[229]

Ler é sonhar pela mão de outrem. Ler mal e por alto é libertarmo-nos da mão que nos conduz. A superficialidade na erudição é o melhor modo de ler bem e ser profundo.

Que coisa tão reles e baixa que é a vida! Repara que para ser baixa e reles basta não a quereres, ser-te dada, nada depender da tua vontade, nem mesmo da tua ilusão da tua vontade.

Morrer é sermos outros totalmente. Por isso o suicídio é a covardia; é entregarmo-nos totalmente à vida.



[230]

A arte é um esquivar-se a agir, ou a viver. A arte é a expressão intelectual da emoção, distinta da vida, que é a expressão volitiva da emoção. O que não temos, ou não ousamos, ou não conseguimos, podemos possuí-lo em sonho, e é com esse sonho que fazemos arte. Outras vezes a emoção é a tal ponto forte que, embora reduzida à ação, a ação, a que se reduziu, não a satisfaz; com a emoção que sobra, que ficou inexpressa na vida, se forma a obra de arte. Assim, há dois tipos de artista: o que exprime o que não tem e o que exprime o que sobrou do que teve.



[231]

Fazer uma obra e reconhecê-la má depois de feita é uma das tragédias da alma. Sobretudo é grande quando se reconhece que essa obra é a melhor que se podia fazer. Mas ao ir escrever uma obra, saber de antemão que ela tem de ser imperfeita e falhada; ao está-la escrevendo estar vendo que ela é imperfeita e falhada – isto é o máximo da tortura e da humilhação do espírito. Não se os versos que escrevo sinto que me não satisfazem, mas sei que os versos que estou para escrever me não satisfarão, também. Sei-o tanto filosoficamente, como carnalmente, por uma entrevisão obscura e gladiolada.

Por que escrevo então? Porque, pregador que sou da renúncia, não aprendi ainda a executá-la plenamente. Não aprendi a abdicar da tendência para o verso e a prosa. Tenho de escrever como cumprindo um castigo. E o maior castigo é o de saber que o que escrevo resulta inteiramente fútil, falhado e incerto.

Em criança escrevia já versos. Então escrevia versos muito maus, mas julgava-os perfeitos. Nunca mais tornarei a ter o prazer falso de produzir obra perfeita. O que escrevo hoje é muito melhor. É melhor, mesmo, do que o que poderiam escrever os melhores. Mas está infinitamente abaixo daquilo que eu, não sei porquê, sinto que podia – ou talvez seja, que devia – escrever. Choro sobre os meus versos maus da infância como sobre uma criança morta, um filho morto, uma última esperança que se fosse.



[232]

Quanto mais avançamos na vida, mais nos convencemos de duas verdades que todavia se contradizem. A primeira é de que, perante a realidade da vida, soam pálidas todas as ficções da literatura e da arte. Dão, é certo, um prazer mais nobre que os da vida; porém são como os sonhos, em que sentimos sentimentos que na vida se não sentem, e se conjugam formas que na vida se não encontram; são contudo sonhos, de que se acorda, que não constituem memórias nem saudades, com que vivamos depois uma segunda vida.

A segunda é de que, sendo desejo de toda alma nobre o percorrer a vida por inteiro, ter experiência de todas as coisas, de todos os lugares e de todos os sentimentos vividos, e sendo isto impossível, a vida só subjetivamente pode ser vivida por inteiro, só negada pode ser vivida na sua substância total.

Estas duas verdades são irredutíveis uma à outra. O sábio abster-se-á de as querer conjugar, e abster-se-á também de repudiar uma ou outra. Terá contudo que seguir uma, saudoso da que não segue; ou repudiar ambas, erguendo-se acima de si mesmo em um nirvana próprio.

Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol, e quando não há sol o calor, onde quer que esteja. Feliz quem abdica da sua personalidade pela imaginação, e se deleita na contemplação das vidas alheias, vivendo, não todas as impressões, mas o espetáculo externo de todas as impressões alheias. Feliz, por fim, esse que abdica de tudo, e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem diminuído.

O campônio, o leitor de novelas, o puro asceta – estes três são os felizes da vida, porque são estes três que abdicam da personalidade – um porque vive do instinto, que é impessoal, outro porque vive da imaginação, que é esquecimento, o terceiro porque não vive, e, não tendo morrido, dorme.

Nada me satisfaz, nada me consola, tudo – quer haja sido, quer não – me sacia. Não quero ter a alma e não quero abdicar dela. Desejo o que não desejo e abdico do que não tenho. Não posso ser nada nem tudo: sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero.



[233]

... a tristeza solene que habita em todas as coisas grandes – nos píncaros como nas grandes vidas, nas noites profundas como nos poemas eternos.



[234]

Podemos morrer se apenas amamos.



[235]

Só uma vez fui verdadeiramente amado. Simpatias, tive-as sempre, e de todos. Nem ao mais casual tem sido fácil ser grosseiro, ou ser brusco, ou ser até frio para comigo. Algumas simpatias tive que, com auxílio meu, poderia – pelo menos talvez – ter convertido em amor ou afeto. Nunca tive paciência ou atenção do espírito para sequer desejar empregar esse esforço.

A princípio de observar isto em mim, julguei – tanto nos desconhecemos – que havia neste caso da minha alma uma razão de timidez. Mas depois descobri que não havia; havia um tédio das emoções, diferente do tédio da vida, uma impaciência de me ligar a qualquer sentimento contínuo, sobretudo quando houvesse de se lhe atrelar um esforço prosseguido. Para quê? pensava em mim o que não pensa. Tenho a sutileza bastante, o tato psicológico suficiente para saber o “como”; o “como do como” sempre me escapou. A minha fraqueza de vontade começou sempre por ser uma fraqueza da vontade de ter vontade. Assim me sucedeu nas emoções como me sucede na inteligência, e na vontade mesma, e em tudo quanto é vida.

Mas daquela vez em que uma malícia da oportunidade me fez julgar que amava, e verificar deveras que era amado, fiquei, primeiro, estonteado e confuso, como se me saíra uma sorte grande em moeda inconvertível. Fiquei, depois, porque ninguém é humano sem o ser, levemente envaidecido; esta emoção, porém, que pareceria a mais natural, passou rapidamente. Sucedeu-se um sentimento difícil de definir, mas em que se salientavam incomodamente as sensações de tédio, de humilhação e de fadiga.

De tédio, como se o Destino me houvesse imposto uma tarefa em serões desconhecidos. De tédio, como se um novo dever – o de uma horrorosa reciprocidade – me fosse dado com a ironia de um privilégio, que eu me teria ainda que maçar, agradecendo-o ao Destino. De tédio, como se me não bastasse a monotonia inconsistente da vida, para agora se lhe sobrepor a monotonia obrigatória de um sentimento definido.

E de humilhação, sim, de humilhação. Tardei em perceber a que vinha um sentimento aparentemente tão pouco justificado pela sua causa. O amor a ser amado deveria ter-me aparecido. Deveria ter-me envaidecido de alguém reparar atentamente para a minha existência como ser-amável. Mas, à parte o breve momento de real envaidecimento, em que todavia não sei se o pasmo teve mais parte que a própria vaidade, a humilhação foi a sensação que recebi de mim. Senti que me era dada uma espécie de prêmio destinado a outrem – prêmio, sim, de valia para quem naturalmente o merecesse.

Mas fadiga, sobretudo fadiga – a fadiga que passa o tédio. Compreendi então uma frase de Chateaubriand que sempre me enganara por falta de experiência de mim mesmo. Diz Chateaubriand, figurando-se em René, “amarem-o cansava-o” – on le fatigait en l’aimant. Conheci, com pasmo, que isto representava uma experiência idêntica à minha, e cuja verdade portanto eu não tinha o direito de negar.

A fadiga de ser amado, de ser amado deveras! A fadiga de sermos o objeto do fardo das emoções alheias! Converter quem quisera ver-se livre, sempre livre, no moço de fretes da responsabilidade de corresponder, da decência de se não afastar, para que se não suponha que se é príncipe nas emoções e se renega o máximo que uma alma humana pode dar. A fadiga [de] se nos tornar a existência uma coisa dependente em absoluto de uma relação com um sentimento de outrem! A fadiga de, em todo o caso, ter forçosamente que sentir, ter forçosamente, ainda que sem reciprocidade, que amar um pouco também!

Passou de mim, como até mim veio, esse episódio na sombra. Hoje não resta dele nada, nem na minha inteligência, nem na minha emoção. Não me trouxe experiência alguma que eu não pudesse ter deduzido das leis da vida humana cujo conhecimento instintivo albergo em mim porque sou humano. Não me deu nem prazer que eu recorde com tristeza, ou pesar que eu lembre com tristeza também. Tenho a impressão de que foi uma coisa que li algures, um incidente sucedido a outrem, novela de que li metade, e de que a outra metade faltou, sem que me importasse que faltasse, pois até onde a li estava certa, e, embora não tivesse sentido, tal era já que lhe não poderia dar sentido a parte faltante, qualquer que fosse o seu enredo.

Resta-me apenas uma gratidão a quem me amou. Mas é uma gratidão abstrata, pasmada, mais da inteligência do que de qualquer emoção. Tenho pena que alguém tivesse tido pena por minha causa; é disso que tenho pena, e não tenho pena de mais nada.

Não é natural que a vida me traga outro encontro com as emoções naturais. Quase desejo que apareça para ver como sinto dessa segunda vez, depois de ter atravessado toda uma extensa análise da primeira experiência. É possível que sinta menos; é também possível que sinta mais. Se o Destino o der, que o dê. Sobre as emoções tenho curiosidade. Sobre os fatos, quaisquer que venham a ser, não tenho curiosidade alguma.



[236]

Não se subordinar a nada – nem a um homem, nem a um amor, nem a uma idéia, ter aquela independência longínqua que consiste em não crer na verdade, nem, se a houvesse, na utilidade do conhecimento dela – tal é o estado em que, parece-me, deve decorrer, para consigo mesma, a vida íntima intelectual dos que não vivem sem pensar. Pertencer – eis a banalidade. Credo, ideal, mulher ou profissão – tudo isso é a cela e as algemas. Ser é estar livre. A mesma ambição, se vão orgulho e paixão, é um fardo, não nos orgulharíamos se compreendêssemos que é um cordel pelo qual nos puxam. Não: nem ligações conosco! Livres de nós como dos outros, contemplativos sem êxtase, pensadores sem conclusão, viveremos, libertos de Deus, o pequeno intervalo que a distração dos algozes concede ao nosso êxtase na parada. Temos amanhã a guilhotina. Se a não tivéssemos amanhã tê-la-íamos depois de amanhã. Passeemos ao sol o repouso antes do fim, ignorantes voluntariamente dos propósitos e dos perseguimentos. O sol dourará nossas frontes sem rugas e a brisa terá frescura para quem deixar de esperar.

Atiro a caneta pela secretária fora e ela rola, regressando, sem que eu a apanhe, pelo declive onde trabalho. Senti tudo de repente. E a minha alegria manifesta-se por este gesto da raiva que não sinto.



[237]

Notas para uma regra de vida

Precisar de dominar os outros é precisar dos outros. O chefe é um dependente.

Aumentar a personalidade sem incluir nela nada alheio – nem pedindo aos outros, nem mandando nos outros, mas sendo outros quando outros são precisos.

Reduzir as necessidades ao mínimo, para que em nada dependamos de outrem.

É certo que, em absoluto, esta vida é impossível. Mas não é impossível relativamente.

Consideremos um dono de escritório. Ele tem obrigação de poder dispensar toda a gente; tem a obrigação de saber escrever à máquina, de saber contabilidade, de saber varrer o escritório. Que a sua dependência dos outros seja, portanto, só uma necessidade de não perder tempo, e não uma necessidade da incompetência própria. Que diga ao praticante, “Vá deitar esta carta no correio” porque não quer perder o tempo que levaria o deitá-la no correio, mas não porque não saiba onde é o correio. Que diga ao empregado, “Vá tratar deste assunto ali”, porque não quer perder o tempo de o tratar, mas não porque não saiba tratá-lo.



[238]

Nenhum prêmio certo tem a virtude, nenhum castigo certo o pecado. Nem seria justo que houvesse tal prêmio ou tal castigo. Virtude ou pecado são manifestações inevitáveis de organismos condenados a um ou a outro, servindo a pena de serem bons ou a pena de serem maus. Por isso todas as religiões colocam as recompensas e os castigos, merecidos por quem, nada sendo nem podendo, nada pôde merecer, em outros mundos, de que nenhuma ciência pode dar notícia, de que nenhuma fé pode transmitir a visão.

Abdiquemos, pois, de toda a crença sincera, como de toda a preocupação de influir em outrem.

A vida, disse Tarde, é a busca do impossível através do inútil.

Busquemos sempre o impossível, porque tal é o nosso fado; busquemo-lo através do inútil, porque não passa caminho por outro ponto; ascendamos, porém, à consciência de que nada buscamos que possa obter-se, de que por nada passamos que mereça um carinho ou uma saudade.

Cansamo-nos de tudo, exceto de compreender, disse o escoliasta.

Compreendamos, compreendamos sempre, e façamos por tecer astuciosamente capelas ou grinaldas que hão-de murchar também, as flores espectrais dessa compreensão.



[239]

Cansamo-nos de tudo, exceto de compreender. O sentido da frase é por vezes difícil de atingir.

Cansamo-nos de pensar para chegar a uma conclusão, porque quanto mais se pensa, mais se analisa, mais se distingue, menos se chega a uma conclusão.

Caímos então naquele estado de inércia em que o mais que queremos é compreender bem o que é exposto – uma atitude estética, pois que queremos compreender sem nos interessar, sem que nos importe que o compreendido seja ou não verdadeiro, sem que vejamos mais no que compreendemos senão a forma exata como foi exposto, a posição de beleza racional que tem para nós.

Cansamo-nos de pensar, de ter opiniões nossas, de querer pensar para agir. Não nos cansamos, porém, de ter, ainda que transitoriamente, as opiniões alheias, para o único fim de sentir o seu influxo e não seguir o seu impulso.



[240]

Paisagem de chuva

Toda a noite, e pelas horas fora, o chiar da chuva baixou. Toda a noite, comigo entredesperto, a sua monotonia fria me insistiu nos vidros. Ora um rasgo de vento, em ar mais alto, açoitava, e a água ondeava de som e passava mãos rápidas pela vidraça; ora um som surdo só fazia sono no exterior morto. A minha alma era a mesma de sempre, entre lençóis como entre gente, dobrosamente consciente do mundo. Tardava o dia como a felicidade e àquela hora parecia que tardava indefinidamente.

Se o dia e a felicidade nunca viessem! Se esperar, ao menos, pudesse nem sequer ter a desilusão de conseguir.

O som casual de um carro tardo, áspero a saltar nas pedras, crescia do fundo da rua, estralejava por baixo da vidraça, apagava-se para o fundo da rua, para o fundo do vago sono que eu não conseguia de todo. Batia, de quando em quando, uma porta de escada. Às vezes havia um chapinhar líquido de passos, um roçar por si mesmas de vestes molhadas. Uma ou outra vez, quando os passos eram mais, soava alto e atacava. Depois o silêncio volvia, com os passos que se apagavam, e a chuva continuava, inumeravelmente.

Nas paredes escuramente visíveis do meu quarto, se eu abria os olhos do sono falso, boiavam fragmentos de sonhos por fazer, vagas luzes, riscos pretos, coisas de nada que trepavam e desciam. Os móveis, maiores do que de dia, manchavam vagamente o absurdo da treva. A porta era indicada por qualquer coisa nem mais branca, nem mais preta do que a noite, mas diferente. Quanto à janela, eu só a ouvia.

Nova, fluida, incerta, a chuva soava. Os momentos tardavam ao som dela. A solidão da minha alma alargava-se, alastrava, invadia o que eu sentia, o que eu queria, o que eu ia a sonhar. Os objetos vagos, participantes, na sombra, da minha insônia, passavam a ter lugar e dor na minha desolação.



[241]

Sonho triangular

A luz tornara-se de um amarelo exageradamente lento, de um amarelo sujo de lividez. Haviam crescido os intervalos entre as coisas, e os sons, mais espaçados de uma maneira nova, davam-se desligadamente. Quando se ouviam acabavam de repente, como que cortados. O calor, que parecia ter aumentado, parecia estar, ele calor, frio. Pela leve frincha das portas encostadas da janela via-se a atitude de exagerada expectativa da única árvore visível. O seu verde era outro. O silêncio entrara-lhe com a cor. Na atmosfera haviam-se fechado pétalas. E na própria composição do espaço uma interrelação diferente de qualquer coisa como planos havia alterado e quebrado o modo dos sons, das luzes e das cores usarem a extensão.



[242]

À parte aqueles sonhos vulgares, que são as vergonhas correntes das alfurjas da alma, que ninguém ousará confessar, e oprimem as vigílias como fantasmas sujos, viscosidades e borbulhas sebentas da sensibilidade reprimida, o que [de] ridículo, o que de apavorador, e indizível, a alma pode, ainda que com esforço, reconhecer nos seus recantos!

A alma humana é um manicômio de caricaturas. Se uma alma pudesse revelar-se com verdade, nem houvesse um pudor mais profundo que todas as vergonhas conhecidas e definidas, seria, como dizem da verdade, um poço, mas um poço sinistro cheio de ecos vagos, habitado por vidas ignóbeis, viscosidades sem vida, lesmas sem ser, ranho da subjetividade.



[243]

Quem quisesse fazer um catálogo de monstros, não teria mais que fotografar em palavras aquelas coisas que a noite traz às almas sonolentas que não conseguem dormir. Essas coisas têm toda a incoerência do sonho sem a desculpa incógnita de se estar dormindo. Pairam como morcegos sobre a passividade da alma, ou vampiros que suguem o sangue da submissão.

São larvas do declive e do desperdício, sombras que enchem o vale, vestígios que ficam do destino. Umas vezes são vermes, nauseantes à própria alma que os afaga e cria; outras vezes são espectros, e rondam sinistramente coisa nenhuma; outras vezes, ainda, emergem cobras dos recôncavos absurdos das emoções perdidas.

Lastro do falso, não servem senão para que não sirvamos. São dúvidas do abismo, deitadas na alma, arrastando dobras sonolentas e frias. Duram fumos, passam rastros, e não há mais que o haverem sido na substância estéril de ter tido consciência deles. Um ou outro é como uma peça íntima de fogo-de-artifício: faísca-se um tempo entre sonhos, e o resto é a inconsciência da consciência com que o vimos.

Nastro desatado, a alma não existe em si mesma. As grandes paisagens são para amanhã, e nós já vivemos. Falhou a conversa interrompida. Quem diria que a vida havia de ser assim?

Perco-me se me encontro, duvido se acho, não tenho se obtive. Como se passeasse, durmo, mas estou desperto. Como se dormisse, acordo, e não me pertenço. A vida, afinal, é, em si mesma, uma grande insônia, e há um estremunhamento lúcido em tudo quanto pensamos e fazemos.

Seria feliz se pudesse dormir. Esta opinião é deste momento, porque não durmo. A noite é um peso imenso por detrás do afogar-me com o cobertor mudo do que sonho. Tenho uma indigestão na alma.

Sempre, depois de depois, virá o dia, mas será tarde, como sempre.

Tudo dorme e é feliz, menos eu. Descanso um pouco, sem que ouse que durma. E grandes cabeças de monstros sem ser emergem confusas do fundo de quem sou. São dragões do Oriente do abismo, com línguas encarnadas de fora da lógica, com olhos que fitam sem vida a minha vida morta que os não fita.

A tampa, por amor de Deus, a tampa! Concluam-me a inconsciência e vida!

Felizmente, pela janela fria, de portas desdobradas para trás, um fio triste de luz pálida começa a tirar a sombra do horizonte. Felizmente, o que vai raiar é o dia. Sossego, quase, do cansaço do desassossego. Um galo canta, absurdo, em plena cidade. O dia lívido começa no meu vago sono. Alguma vez dormirei. Um ruído de rodas faz carroça. Minhas pálpebras dormem, mas não eu. Tudo, enfim, é o Destino.



[244]

Ser major reformado parece-me uma coisa ideal. É pena não se poder ter sido eternamente apenas major reformado.

A sede de ser completo deixou-me neste estado de mágoa inútil.

A futilidade trágica da vida.

A minha curiosidade irmã das cotovias.

A angústia pérfida dos poentes, tímida enxárcia nas auroras.

Sentemo-nos aqui. De aqui vê-se mais céu. É consoladora a expansão enorme desta altura estrelada. Dói a vida menos ao vê-la; passa por nossa face quente da vida o aceno pequeno dum leque leve.



[245]

A alma humana é vítima tão inevitável da dor que sofre a dor da surpresa dolorosa mesmo com o que devia esperar. Tal homem, que toda a vida falou da inconstância e da volubilidade feminina como de coisas naturais e típicas, terá toda a angústia da surpresa triste quando se encontre traído em amor – tal qual, não outro, como se tivesse sempre tido por dogma ou esperança a fidelidade e a firmeza da mulher. Tal outro, que tem tudo por oco e vazio, sentirá como um raio súbito a descoberta de que têm por nada o que escreve, ou que é estéril o seu esforço por ensinar, ou que é falsa a comunicabilidade da sua emoção.

Não há que crer que os homens, a quem estes desastres acontecem, e outros desastres como estes, houvessem sido pouco sinceros nas coisas que disseram, ou que escreveram, e em cuja substância esses desastres eram previsíveis ou certos. Nada tem a sinceridade da afirmação inteligente com a naturalidade da emoção espontânea. E isto parece poder ser assim, a alma parece poder assim ter surpresas, só para que a dor lhe não falte, o opróbrio não deixe de lhe caber, a mágoa não lhe escasseie como quinhão igualitário na vida. Todos somos iguais na capacidade para o erro e para o sofrimento. Só não passa quem não sente; e os mais altos, os mais nobres, os mais previdentes, são os que vêm a passar e a sofrer do que previam e do que desdenhavam. E a isto que se chama a Vida.



[246]

Considerar todas as coisas que nos sucedem como acidentes ou episódios de um romance, a que assistimos não com a atenção senão com a vida. Só com essa atitude poderemos vencer a malícia dos dias e os caprichos dos sucessos.



[247]

A vida prática sempre me pareceu o menos cômodo dos suicídios. Agir foi sempre para mim a condenação violenta do sonho injustamente condenado.

Ter influência no mundo exterior, alterar coisas, transpor entes, influir em gente – tudo isto pareceu-me sempre de uma substância mais nebulosa que a dos meus devaneios. A futilidade imanente de todas as formas da ação foi, desde a minha infância, uma das medidas mais queridas do meu desapego até de mim.

Agir é reagir contra si próprio. Influenciar é sair de casa.

Sempre meditei como era absurdo que, onde a realidade substancial é uma série de sensações, houvesse coisas tão complicadamente simples como comércios, indústrias, relações sociais e familiares, tão desoladoramente incompreensíveis perante a atitude interior da alma para com a idéia de verdade.



[248]

Da minha abstenção de colaborar na existência do mundo exterior advém, entre outras coisas, um fenômeno psíquico curioso.

Abstendo-me inteiramente da ação, desinteressando-me das Coisas, consigo ver o mundo exterior quando atento nele com uma objetividade perfeita. Como nada interessa ou leva a ter razão para alterá-lo, não o altero.

É assim consigo



[249]

Desde o meio do século dezoito que uma doença terrível baixou progressivamente sobre a civilização. Dezessete séculos de aspiração cristã constantemente iludida, cinco séculos de aspiração pagã perenemente postergada – o catolicismo que falira como cristismo, a renascença que falira como paganismo, a reforma que falira como fenômeno universal. O desastre de tudo quanto se sonhara, a vergonha de tudo quanto se conseguira, a miséria de viver sem vida digna que os outros pudessem ter conosco, e sem vida dos outros que pudéssemos dignamente ter.

Isto caiu nas almas e envenenou-as. O horror à ação, por ter de ser vil numa sociedade vil, inundou os espíritos. A atividade superior da alma adoeceu; só a atividade inferior, porque mais vitalizada, não decaiu; inerte a outra, assumiu a regência do mundo.

Assim nasceu uma literatura e uma arte feitas dos elementos secundários do pensamento – o romantismo; e uma vida social feita dos elementos secundários da atividade – a democracia moderna.

As almas nascidas para mandar só tinham o remédio de abster-se. As almas nascidas para criar, numa sociedade onde as forças criadoras faliam, tinham por único mundo plástico à sua vontade o mundo social dos seus sonhos, a esterilidade introspectiva da própria alma.

Chamamos “românticos”, por igual, aos grandes que faliram e aos pequenos que se revelaram. Mas não há semelhança senão na sentimentalidade evidente; mas em uns a sentimentalidade mostra a impossibilidade do uso ativo da inteligência; em outros mostra a ausência da própria inteligência. São fruto da mesma época um Chateaubriand e um Hugo, um Vigny e um Michelet. Mas um Chateaubriand é uma alma grande que diminui; um Hugo é uma alma pequena que se distende com o vento do tempo; um Vigny é um gênio que teve de fugir; um Michelet uma mulher que teve de ser homem de gênio. No pai de todos, Jean-Jacques Rousseau, as duas tendências estão juntas. A inteligência nele era de criador, a sensibilidade de escravo. Afirma ambas por igual.

Mas a sensibilidade social, que tinha, envenenou as suas teorias, que a inteligência apenas dispôs claramente. A inteligência que tinha só serviu para gemer a miséria de coexistir com tal sensibilidade.

J. J. Rousseau é o homem moderno, mas mais completo que qualquer homem moderno. Das fraquezas que o fizeram falir tirou – ai dele e de nós! – as forças que o fizeram triunfar. O que partiu dele venceu, mas nos lábaros da sua vitória, quando entrou na cidade, viu-se que estava escrita, em baixo, a palavra “Derrota”. No que dele ficou para trás, incapaz do esforço de vencer, foram as coroas e os cetros, a majestade de mandar e a glória de vencer por destino interno.

II

O mundo, no qual nascemos, sofre de século e meio de renúncia e de violência – da renúncia dos superiores e da violência dos inferiores, que é a sua vitória. Nenhuma qualidade superior pode afirmar-se modernamente, tanto na ação, como no pensamento, na esfera política, como na especulativa.

A ruína da influência aristocrática criou uma atmosfera de brutalidade e de indiferença pelas artes, onde uma sensibilidade fina não tem refúgio. Dói mais, cada vez mais, o contato da alma com a vida. O esforço é cada vez mais doloroso, porque são cada vez mais odiosas as condições exteriores do esforço.

A ruína dos ideais clássicos fez de todos artistas possíveis, e portanto maus artistas. Quando o critério da arte era a construção sólida, a observância cuidada de regras – poucos podiam tentar ser artistas, e grande parte desses são muito bons. Mas quando a arte passou de ser tida como criação, para passar a ser tida como expressão de sentimentos, cada qual podia ser artista, porque todos têm sentimentos.



[250]

Mesmo que eu quisesse criar, a única arte verdadeira é a da construção. Mas o meio moderno torna impossível o aparecimento de qualidades de construção no espírito.

Por isso se desenvolveu a ciência. A única coisa em que há construção, hoje, é uma máquina; o único argumento em que há encadeamento o de uma demonstração matemática.

O poder de criar precisa de ponto de apoio, da muleta da realidade.

A arte é uma ciência...

Sofre ritmicamente.

Não posso ler, porque a minha crítica hiperacesa não descortina senão defeitos, imperfeições, possibilidades de melhor. Não posso sonhar, porque sinto o sonho tão vivamente que o comparo com a realidade, de modo que sinto logo que ele não é real; e assim o seu valor desaparece. Não posso entreter-me na contemplação inocente das coisas e dos homens, porque a ânsia de aprofundar é inevitável, e, desde que o meu interesse não pode existir sem ela, ou há-de morrer às mãos dela ou secar.

Não posso entreter-me com a especulação metafísica porque sei de sobra, e por mim, que todos os sistemas são defensáveis e intelectualmente possíveis; e, para gozar a arte intelectual de construir sistemas, falta-me o poder esquecer que o fim da especulação metafísica é a procura da verdade.

Um passado feliz em cuja lembrança torne a ser feliz; sem nada no presente que me alegre ou me interesse, em sonho ou hipótese de futuro que seja diferente deste presente ou possa ter outro passado que esse passado, jazo a minha vida, consciente espectro de um paraíso em que nunca estive, cadáver-nado das minhas esperanças por haver.

Felizes os que sofrem com unidade! Aqueles a quem a angústia altera mas não divide, que crêem, ainda que na descrença, e podem sentar-se ao sol sem pensamento reservado.



[251]

Fragmentos de uma autobiografia

Primeiro entretiveram-me as especulações metafísicas, as idéias científicas depois. Atraíram-me finalmente as sociológicas. Mas em nenhum destes estádios da minha busca da verdade encontrei segurança e alívio.

Pouco lia, em qualquer das preocupações. Mas no pouco que lia, tantas teorias me cansava de ver, contraditórias, igualmente assentes em razões desenvolvidas, todas elas igualmente prováveis e de acordo com uma certa escolha de fatos que tinha sempre o ar de ser os fatos todos. Se erguia dos livros os meus olhos cansados, ou se dos meus pensamentos desviava para o mundo exterior a minha perturbada atenção, só uma coisa eu via, desmentindo-me toda a utilidade de ler e pensar, arrancando-me uma a uma todas as pétalas da idéia do esforço: a infinita complexidade das coisas, a imensa soma, a prolixa inatingibilidade dos próprios poucos fatos que se poderiam conceber precisos para o levantamento de uma ciência.

***

O desgosto de não encontrar nada encontrei comigo pouco a pouco. Não achei razão nem lógica senão a um ceticismo que nem sequer buscava uma lógica para se defender. Em curar-me disto não pensei – por que me havia eu de curar disso? E o que era ser são? Que certeza tinha eu que esse estado de alma deva pertencer à doença? Quem nos afirma que, a ser doença, a doença não era mais desejável, ou mais lógica, ou mais, do que a saúde? A ser a saúde preferível, porque era eu doente se não por naturalmente o ser, e se naturalmente o era, por que ir contra a Natureza, que para algum fim, se fim ela tem, me quereria decerto doente?

Nunca encontrei argumentos senão para a inércia. Dia a dia mais e mais se infiltrou em mim a consciência sombria da minha inércia de abdicador. Procurar modos de inércia, apostar-me a fugir a todo o esforço quanto a mim, a toda a responsabilidade social – talhei nessa matéria de a estátua pensada da minha existência.

Deixei leituras, abandonei casuais caprichos de este ou aquele modo estético da vida. Do pouco que lia aprendi a extrair só elementos para o sonho. Do pouco que presenciava, apliquei-me a tirar apenas o que se podia, em reflexo distante e errado, prolongar mais dentro de mim.

Esforcei-me porque todos os meus pensamentos, todos os capítulos quotidianos da minha experiência me fornecessem apenas sensações. Criei à minha vida uma orientação estética. E orientei essa estética para puramente individual. Fi-la minha apenas.

Apliquei-me depois, no decurso procurado do meu hedonismo interior, a furtar-me às sensibilidades sociais. Lentamente me couracei contra o sentimento do ridículo. Ensinei-me a ser insensível quer para os apelos dos instintos quer para as solicitações.

Reduzi ao mínimo o meu contato com os outros. Fiz o que pude para perder toda a afeição à vida. Do próprio desejo da glória lentamente me despi, como quem cheio de cansaço se despe para repousar.

Do estudo da metafísica, das ciências, passei a ocupações de espírito mais violentas para o equilíbrio dos meus nervos. Gastei apavoradas noites debruçado sobre volumes de místicos e de cabalistas, que nunca tinha paciência para ler de todo, de outra maneira que não intermitentemente, trêmulo e. Os ritos e as razões dos Rosa-Cruz, a simbólica da Cabala e dos Templários, – sofri durante tempos a opressão de tudo isso. E encheram a febre dos meus dias especulações venenosas, da razão demoníaca da metafísica – a magia, a alquimia – extraindo um falso estímulo vital de sensação dolorosa e presciente de estar como que sempre à beira de saber um mistério supremo. Perdi-me pelos sistemas secundários, excitados, da metafísica, sistemas cheios de analogias perturbantes, de alçapões para a lucidez, grandes paisagens misteriosas onde reflexos de sobrenatural acordam mistérios nos contornos.

Envelheci pelas sensações... Gastei-me gerando os pensamentos... E a minha vida passou a ser uma febre metafísica, sempre descobrindo sentidos ocultos nas coisas, brincando com o fogo das analogias misteriosas, procrastinando a lucidez integral, a síntese normal para se denegrir [?].

Caí numa complexa indisciplina cerebral, cheia de indiferenças. Onde me refugiei? Tenho a impressão de que não me refugiei em parte nenhuma.

Abandonei-me, mas não sei a quê.

Concentrei e limitei os meus desejos, para os poder requintar melhor.

Para se chegar ao infinito, e julgo que se pode lá chegar, é preciso termos um porto, um só, firme, e partir dali para Indefinido.

Hoje sou ascético na minha religião de mim. Uma chávena de café, um cigarro e os meus sonhos substituem bem o universo e as suas estrelas, o trabalho, o amor, até a beleza e a glória. Não tenho quase necessidade de estímulos. Ópio tenho-o eu na alma.

Que sonhos tenho? Não sei. Forcei-me por chegar a um ponto onde nem saiba já em que penso, com que sonho, o que visiono. Parece-me que sonho cada vez demais longe, que cada vez mais sonho o vago, o impreciso, o invisionável.

Não faço teorias a respeito da vida. Se ela é boa ou má não sei, não penso. Para meus olhos é dura e triste, com sonhos deliciosos de permeio. Que me importa o que ela é para os outros!

A vida dos outros só me serve para eu lhes viver, a cada um a vida que me parece que lhes convém no meu sonho.



[252]

Pensar, ainda assim, é agir. Só no devaneio absoluto, onde nada de ativo intervém, onde por fim até a nossa consciência de nós mesmos se atola num lodo – só aí, nesse morno e úmido não-ser, a abdicação da ação competentemente se atinge.

Não querer compreender, não analisar... Ver-se como à natureza; olhar para as suas impressões como para um campo – a sabedoria é isto.



[253]

o sagrado instinto de não ter teorias...



[254]

Mais que uma vez, ao passear lentamente pelas ruas da tarde, me tem batido na alma, com uma violência súbita e estonteante, a estranhíssima presença da organização das coisas. Não são bem as coisas naturais que tanto me afetam, que tão poderosamente me trazem esta sensação: são antes os arruamentos, os letreiros, as pessoas vestidas e falando, os empregos, os jornais, a inteligência de tudo. Ou, antes, é o fato de que existem arruamentos, letreiros, empregos, homens, sociedade, tudo a entender-se e a seguir e a abrir caminhos.

Reparo no homem diretamente, e vejo que é tão inconsciente como um cão ou um gato; fala por uma inconsciência de outra ordem; organiza-se em sociedade por uma inconsciência de outra ordem, absolutamente inferior à que empregam as formigas e as abelhas na sua vida social. E então, tanto ou mais que da existência de organismos, tanto ou mais que da existência de leis físicas rígidas e intelectuais, se me revela por uma luz evidente a inteligência que cria e impregna o mundo.

Bate-me então, sempre que assim sinto, a velha frase de não sei que escolástico: Deus est anima brutorum, Deus é a alma dos brutos. Assim entendeu o autor da frase, que é maravilhosa, explicar a certeza com que o instinto guia os animais inferiores, em que se não divisa inteligência, ou mais que um esboço dela. Mas todos somos animais inferiores – falar e pensar são apenas novos instintos, menos seguros que os outros porque novos. E a frase do escolástico, tão justa em sua beleza, alarga-se, e digo, Deus é a alma de tudo.

Nunca compreendi que quem uma vez considerou este grande fato da relojoaria universal pudesse negar o relojoeiro em que o mesmo Voltaire não descreu. Compreendo que, atendendo a certos fatos aparentemente desviados de um plano (e era preciso saber o plano para saber se são desviados), se atribua a essa inteligência suprema algum elemento de imperfeição. Isso compreendo, se bem que o não aceite. Compreendo ainda que, atendendo ao mal que há no mundo, se não possa aceitar a bondade infinita dessa inteligência criadora. Isso compreendo, se bem que o não aceite também. Mas que se negue a existência dessa inteligência, ou seja, de Deus, é coisa que me parece uma daquelas estupidezes que tantas vezes afligem, num ponto da inteligência, homens que, em todos os outros pontos dela, podem ser superiores; como os que erram sempre as somas, ou, ainda, e pondo já no jogo a inteligência da sensibilidade, os que não sentem a música, ou a pintura, ou a poesia.

Não aceito, disse, nem o critério do relojoeiro imperfeito nem o do relojoeiro sem benevolência. Não aceito o critério do relojoeiro imperfeito porque aqueles pormenores do governo e ajustamento do mundo, que nos parecem lapsos ou sem-razões, não podem, como tal, ser verdadeiramente dados sem que saibamos o plano. Vemos claramente um plano em tudo; vemos certas coisas que nos parecem sem razão, mas é de ponderar que, se há em tudo uma razão, haverá nisso também a mesma razão que há em tudo. Vemos a razão, porém não o plano; como diremos, então, que certas coisas estão fora do plano que não sabemos o que é? Assim como um poeta de ritmos sutis pode intercalar um verso arrítmico para fins rítmicos, isto é, para o próprio fim de que parece afastar-se, e um crítico mais purista do retilíneo que do ritmo chamará errado esse verso, assim o Criador pode intercalar o que nossa estreita [ilógica?] considera arritmias no decurso majestoso do seu ritmo metafísico. Nem aceito, disse, o critério do relojoeiro sem benevolência. Concordo que é um argumento de mais difícil resposta, mas é-o só aparentemente. Podemos dizer que não sabemos bem o que é o mal, não podendo por isso afirmar se uma coisa é má ou boa. O certo, porém, é que uma dor, ainda que para nosso bem, é em si mesma um mal, e basta isso para que haja mal no mundo. Basta uma dor de dentes para fazer descrer na bondade do Criador. Ora o erro essencial deste argumento parece residir no nosso completo desconhecimento do plano de Deus, e nosso igual desconhecimento do que possa ser, como pessoa inteligente, o Infinito Intelectual. Uma coisa é a existência do mal, outra a razão dessa existência. A distinção é talvez sutil ao ponto de parecer sofística, mas o certo é que é justa. A existência do mal não pode ser negada, mas a maldade da existência do mal pode não ser aceita. Confesso que o problema subsiste, mas subsiste porque subsiste a nossa imperfeição.



[255]

Se alguma coisa há que esta vida tem para nós, e, salvo a mesma vida, tenhamos que agradecer aos Deuses, é o dom de nos desconhecermos: de nos desconhecermos a nós mesmos e de nos desconhecermos uns aos outros. A alma humana é um abismo obscuro e viscoso, um poço que se não usa na superfície do mundo. Ninguém se amaria a si mesmo se deveras se conhecesse, e assim, não havendo a vaidade, que é o sangue da vida espiritual, morreríamos na alma de anemia. Ninguém conhece outro, e ainda bem que o não conhece, e, se o conhecesse, conheceria nele, ainda que mãe, mulher ou filho, o íntimo, metafísico inimigo. Entendemo-nos porque nos ignoramos. Que seria de tantos cônjuges felizes se pudessem ver um na alma do outro, se pudessem compreender-se, como dizem os românticos, que não sabem o perigo – se bem que o perigo fútil – do que dizem. Todos os casados do mundo são mal casados, porque cada um guarda consigo, nos secretos onde a alma é do Diabo, a imagem sutil do homem desejado que não é aquele, a figura volúvel da mulher sublime, que aquela não realizou. Os mais felizes ignoram em si mesmos estas suas disposições frustradas; os menos felizes não as ignoram, mas não as conhecem, e só um ou outro arranco frusto, uma ou outra aspereza no trato, evoca, na superfície casual dos gestos e das palavras, o Demônio oculto, a Eva antiga, o Cavaleiro e a Sílfide. A vida que se vive é um desentendimento fluido, uma média alegre entre a grandeza que não há e a felicidade que não pode haver. Somos contentes porque, até ao pensar e ao sentir, somos capazes de não acreditar na existência da alma. No baile de máscaras que vivemos, basta-nos o agrado do traje, que no baile é tudo. Somos servos das luzes e das cores, vamos na dança como na verdade, nem há para nós – salvo se, desertos, não dançamos – conhecimento do grande frio do alto da noite externa, do corpo mortal por baixo dos trapos que lhe sobrevivem, de tudo quanto, a sós, julgamos que é essencialmente nós, mas afinal não é senão a paródia íntima da verdade do que nos supomos. Tudo quanto fazemos ou dizemos, tudo quanto pensamos ou sentimos, traz a mesma máscara e o mesmo dominó. Por mais que dispamos o que vestimos, nunca chegamos à nudez, pois a nudez é um fenômeno da alma e não de tirar fato. Assim, vestidos de corpo e alma, com os nossos múltiplos trajes tão pegados a nós como as penas das aves, vivemos felizes ou infelizes, ou nem até sabendo o que somos, o breve espaço que nos dão os deuses para os divertirmos, como crianças que brincam a jogos sérios.

Um ou outro de nós, liberto ou maldito, vê de repente – mas até esse raras vezes vê – que tudo quanto somos é o que não somos, que nos enganamos no que está certo e não temos razão no que concluímos justo. E esse, que, num breve momento, vê o universo despido, cria uma filosofia, ou sonha uma religião; e a filosofia espalha-se e a religião propaga-se, e os que crêem na filosofia passam a usá-la como veste que não vêem, e os que crêem na religião passam a pô-la como máscara de que se esquecem.

E sempre, desconhecendo-nos a nós e aos outros, e por isso entendendo-nos alegremente, passamos nas volutas da dança ou nas conversas do descanso, humanos, fúteis, a sério, ao som da grande orquestra dos astros, sob os olhares desdenhosos e alheios dos organizadores do espetáculo.

Só eles sabem que nós somos presas da ilusão que nos criaram. Mas qual é a razão dessa ilusão, e por que é que há essa, ou qualquer, ilusão, ou por que é que eles, ilusos também, nos deram que tivéssemos a ilusão que nos deram – isso, por certo, eles mesmos não sabem.



[256]

Tive sempre uma repugnância quase física pelas coisas secretas – intrigas, diplomacia, sociedades secretas, ocultismo. Sobretudo me incomodaram sempre estas duas últimas coisas – a pretensão, que têm certos homens, de que, por entendimentos com Deuses ou Mestres ou Demiurgos, sabem – lá entre eles, exclusos todos nós outros – os grandes segredos que são os caboucos do mundo.

Não posso crer que isso seja assim. Posso crer que alguém o julgue assim. Por que não estará essa gente toda doida, ou iludida? Por serem vários? Mas há alucinações coletivas.

O que sobretudo me impressiona, nesses mestres e sabedores do invisível, é que, quando escrevem para nos contar ou sugerir os seus mistérios, escrevem todos mal. Ofende-me o entendimento que um homem seja capaz de dominar o Diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa. Por que há o comércio com os demônios ser mais fácil que o comércio com a gramática? Quem, através de longos exercícios de atenção e de vontade, consegue, conforme diz, ter visões astrais, por que não pode, com menor dispêndio de uma coisa e de outra, ter a visão da sintaxe? Que há no dogma e ritual da Alta Magia que impeça alguém de escrever, já não digo com clareza, pois pode ser que a obscuridade seja da lei oculta, mas ao menos com elegância e fluidez, pois no próprio abstruso as pode haver? Por que há-de gastar-se toda a energia da alma no estudo da linguagem dos Deuses, e não há-de sobrar um reles bocado com que se estude a cor e o ritmo da linguagem dos homens?

Desconfio dos mestres que o não podem ser primários. São para mim como aqueles poetas estranhos que são incapazes de escrever como os outros. Aceito que sejam estranhos; gostaria, porém, que me provassem que o são por superioridade ao normal e não por impotência dele.

Dizem que há grandes matemáticos que erram adições simples; mas aqui a comparação não é com errar, mas com desconhecer. Aceito que um grande matemático some dois e dois para dar cinco: é um ato de distração, e a todos nós pode suceder. O que não aceito é que não saiba o que é somar, ou como se soma. E é este o caso dos mestres do oculto, na sua formidável maioria.



[257]

O pensamento pode ter elevação sem ter elegância, e, na proporção em que não tiver elegância, perderá a ação sobre os outros. A força sem a destreza é uma simples massa.



[258]

O ter tocado nos pés de Cristo não é desculpa para defeitos de pontuação.

Se um homem escreve bem só quando está bêbado dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me disser que o seu fígado sofre com isso, respondo: o que é o seu fígado? É uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrever vivem sem enquanto.



[259]

Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie – nem sequer mental ou de sonho –, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintática, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.

Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as idéias, as imagens, trêmulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de idéia bruxuleia, malhado e confuso.

Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa seleta o passo célebre de Vieira sobre o Rei Salomão. “Fabricou Salomão um palácio...” E fui lendo, até ao fim, trêmulo, confuso; depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das idéias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais – tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda choro. Não é – não – a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfônica.

Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro direto que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu veto manto régio, pelo qual é senhora e rainha.



[260]

A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exatamente o que eu senti. E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti.

Tudo quanto é abstrato é difícil de compreender, porque é difícil de conseguir para ele a atenção de quem o leia. Darei, por isso, um exemplo simples, em que as abstrações que formei se concretizarão. Suponha-se que, por um motivo qualquer, que pode ser o cansaço de fazer contas ou o tédio de não ter que fazer, cai sobre mim uma tristeza vaga da vida, uma angústia de mim que me perturba e inquieta. Se vou traduzir esta emoção por frases que de perto a cinjam, quanto mais de perto a cinjo, mais a dou como propriamente minha, menos, portanto, a comunico a outros. E, se não há comunicá-la a outros, é mais justo e mais fácil senti-la sem a escrever.

Suponha-se, porém, que desejo comunicá-la a outros, isto é, fazer dela arte, a arte é a comunicação aos outros da nossa identidade íntima com eles; sem e nem há comunicação nem necessidade de a fazer. Procuro qual será a emoção humana vulgar que tenha o tom, o tipo, a forma desta emoção em que estou agora, pelas razões inumanas e particulares de ser um guarda-livros cansado ou um lisboeta aborrecido. E verifico que o tipo de emoção vulgar que produz, na alma vulgar, esta mesma emoção é a saudade da infância perdida.

Tenho a chave para a porta do meu tema. Escrevo e choro a minha infância perdida; demoro-me comovidamente sobre os pormenores de pessoas e mobília da velha casa na província; evoco a felicidade de não ter direitos nem deveres, de ser livre por não saber pensar nem sentir – e esta evocação, se for bem feita como prosa e visões, vai despertar no meu leitor exatamente a emoção que eu senti, e que nada tinha com infância.

Menti? Não, compreendi. Que a mentira, salvo a que é infantil e espontânea, e nasce da vontade de estar a sonhar, é tão-somente a noção da existência real dos outros e da necessidade de conformar a essa existência a nossa, que se conformar a ela. A mentira é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como nos servimos de palavras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos e sutis movimentos da emoção e do pensamento, que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir, assim nos servimos da mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o que, com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer.

A arte mente porque é social. E há só duas grandes formas de arte – uma que se dirige à nossa alma profunda, a outra que se dirige à nossa alma atenta. A primeira é a poesia, o romance a segunda. A primeira começa a mentir na própria estrutura; a segunda começa a mentir na própria intenção. Uma pretende dar-nos a verdade por meio de linhas variadamente regradas, que mentem à inerência da fala; outra pretende dar-nos a verdade por uma realidade que todos sabemos bem que nunca houve.

Fingir é amar. Nem vejo nunca um lindo sorriso ou um olhar significativo que não medite, de repente, e seja de quem for o olhar ou o sorriso, qual é, no fundo da alma em cujo rosto se sorri ou olha, o estadista que nos quer comprar ou a prostituta que quer que a compremos. Mas o.estadista que nos compra amou, ao menos, o comprar-nos; e a prostituta, a quem compremos, amou, ao menos, o comprarmo-la. Não fugimos, por mais que queiramos, à fraternidade universal. Amamo-nos todos uns aos outros, e a mentira é o beijo que trocamos.



[261]

Em mim todas as afeições se passam à superfície, mas sinceramente. Tenho sido ator sempre, e a valer. Sempre que amei, fingi que amei, e para mim mesmo o finjo.



[262]

Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num relâmpago íntimo, que não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém.

Quando brilhou o relâmpago, aquilo onde supus uma cidade era um plaino deserto; e a luz sinistra que me mostrou a mim não revelou céu acima dele. Roubaram-me o poder ser antes que o mundo fosse. Se tive que reencarnar, reencarnei sem mim, sem ter eu reencarnado.

Sou os arredores de uma vila que não há, o comentário prolixo a um livro que se não escreveu. Não sou ninguém, ninguém. Não sei sentir, não sei pensar, não sei querer. Sou uma figura de romance por escrever, passando aérea, e desfeita sem ter sido, entre os sonhos de quem me não soube completar.

Penso sempre, sinto sempre; mas o meu pensamento não contém raciocínios, a minha emoção não contém emoções. Estou caindo, depois do alçapão lá em cima, por todo o espaço infinito, numa queda sem direção, infinitupla e vazia. Minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à roda de vácuo, movimento de um oceano infinito em torno de um buraco em nada, e nas águas que são mais giro que águas bóiam todas as imagens do que vi e ouvi no mundo – vão casas, caras, livros, caixotes, rastros de música e sílabas de vozes, num rodopio sinistro e sem fundo.

E eu, verdadeiramente eu, sou o centro que não há nisto senão por uma geometria do abismo; sou o nada em torno do qual este movimento gira, só para que gire, sem que esse centro exista senão porque todo o círculo o tem. Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem muros, mas com a viscosidade dos muros, o centro de tudo com o nada à roda.

E é, em mim, como se o inferno ele-mesmo risse, sem ao menos a humanidade de diabos a rirem, a loucura grasnada do universo morto, o cadáver rodante do espaço físico, o fim de todos os mundos flutuando negro ao vento, disforme, anacrônico, sem Deus que o houvesse criado, sem ele mesmo que está rodando nas trevas das trevas, impossível, único, tudo.

Poder saber pensar! Poder saber sentir!

Minha mãe morreu muito cedo, e eu não a cheguei a conhecer...



[263]

Tão dado como sou ao tédio, é curioso que nunca, até hoje, me lembrou de meditar em que consiste. Estou hoje, deveras, nesse estado intermédio da alma em que nem apetece a vida nem outra coisa. E emprego a súbita lembrança de que nunca pensei em o que fosse, em sonhar, ao longo de pensamentos meio impressões, a análise, sempre um pouco factícia, do que ele seja.

Não o sei, realmente, se o tédio é somente a correspondência desperta da sonolência do vadio, se é coisa, na verdade, mais nobre que esse entorpecimento. Em mim, o tédio é freqüente, mas, que eu saiba, porque reparasse, não obedece a regras de aparecimento. Posso passar sem tédio um domingo inerte; posso sofrê-lo, repentinamente, como uma nuvem externa, em pleno trabalho atento. Não consigo relacioná-lo com um estado da saúde ou da falta dela; não alcanço conhecê-lo como produto de causas que estejam na parte evidente de mim.

Dizer que é uma angústia metafísica disfarçada, que é uma grande desilusão incógnita, que é uma poesia surda da alma aflorando aborrecida à janela que dá para a vida – dizer isto, ou o que seja irmão disto, pode colorir o tédio, como uma criança ao desenho cujos contornos transborde e apague, mas não me traz mais que um som de palavras a fazer eco nas caves do pensamento.

O tédio... Pensar sem que se pense, com o cansaço de pensar; sentir sem que se sinta, com a angústia de sentir; não querer sem que se não queira, com a náusea de não querer – tudo isto está no tédio sem ser o tédio, nem é dele mais que uma paráfrase ou uma translação. E, na sensação direta, como se de sobre o fosso do castelo da alma se erguesse a ponte levadiça, nem restasse, entre o castelo e as terras, mais que o poder olhá-las sem as poder percorrer. Há um isolamento de nós em nós mesmos, mas um isolamento onde o que separa está estagnado como nós, água suja cercando o nosso desentendimento.

O tédio... Sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocínio... É como a possessão por um demônio negativo, um embruxamento por coisa nenhuma. Dizem que os bruxos, ou os pequenos magos, conseguem, fazendo de nós imagens, e a elas infligindo maus tratos, que esses maus tratos, por uma transferência astral, se reflitam em nós. O tédio surge-me, na sensação transposta desta imagem, como o reflexo maligno de bruxedos de um demônio das fadas, exercidas, não sobre uma imagem minha, senão sobre a sua sombra. E na sombra íntima de mim, no exterior do interior da minha alma, que se colam papéis ou se espetam alfinetes. Sou como o homem que vendeu a sombra, ou, antes, como a sombra do homem que a vendeu.

O tédio... Trabalho bastante. Cumpro o que os moralistas da ação chamariam o meu dever social. Cumpro esse dever, ou essa sorte, sem grande esforço nem notável desinteligência. Mas, umas vezes em pleno trabalho, outras vezes no pleno descanso que, segundo os mesmos moralistas, mereço e me deve ser grato, transborda-se-me a alma de um fel de inércia, e estou cansado, não da obra ou do repouso, mas de mim.

De mim porquê, se não pensava em mim? De que outra coisa, se não pensava nela? O mistério do universo, que baixa às minhas contas ou ao meu reclínio? A dor universal de viver que se particulariza subitamente na minha alma mediúnica? Para quê enobrecer tanto quem não se sabe quem é? É uma sensação de vácuo, uma fome sem vontade de comer, tão nobre como estas sensações do simples cérebro, do simples estômago, vindas de fumar demais ou de não digerir bem.

O tédio... E talvez, no fundo, a insatisfação da alma íntima por não lhe termos dado uma crença, a desolação da criança triste que intimamente somos, por não lhe termos comprado o brinquedo divino. É talvez a insegurança de quem precisa mão que o guie, e não sente, no caminho negro da sensação profunda, mais que a noite sem ruído de não poder pensar, a estrada sem nada de não saber sentir...

O tédio... Quem tem Deuses nunca tem tédio. O tédio é a falta de uma mitologia. A quem não tem crenças, até a dúvida é impossível, até o ceticismo  não tem força para desconfiar. Sim, o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua capacidade de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde ele sobe sólido à verdade.



[264]

Conheço, translata, a sensação de ter comido demais. Conheço-a com a sensação, não com o estômago. Há dias em que em mim se comeu demais. Estou pesado de corpo e lorpa de gestos; tenho vontade de não me tirar dali de maneira nenhuma.

Mas nessas ocasiões, como fato impropício, sói surgir, do meu modorrar indene, um resquício de imaginação perdida. E formo planos no fundo do desconhecimento, estruturo coisas nas raízes da hipótese, e o que não há-de acontecer tem para mim um grande brilho.

Nessas horas estranhas não é só a minha vida material, mas a minha própria vida moral, que me são só apensos – desleixo a idéia do dever mas também a idéia de ser, e tenho sono físico do universo inteiro. Durmo o que conheço e o que sonho com uma igualdade que me pesa nos olhos. Sim, nessas horas sei mais de mim do que nunca soube, e todo eu sou todas as sestas de mendigos entre as árvores da quinta de Ninguém.



[265]

A idéia de viajar seduz-me por translação, como se fosse a idéia própria para seduzir alguém que eu não fosse. Toda a vasta visibilidade do mundo me percorre, num movimento de tédio colorido, a imaginação acordada; esboço um desejo como quem já não quer fazer gestos, e o cansaço antecipado das paisagens possíveis aflige-me, como um vento torpe, a flor do coração que estagnou.

E como as viagens as leituras, e como as leituras tudo... Sonho uma vida erudita, entre o convívio mudo dos antigos e dos modernos, renovando as emoções pelas emoções alheias, enchendo-me de pensamentos contraditórios na contradição dos meditadores e dos que quase pensaram, que são a maioria dos que escreveram. Mas só a idéia de ler se me desvanece se tomo de cima da mesa um livro qualquer, o fato físico de ter que ler anula-me a leitura... Do mesmo modo se me estiola a idéia de viajar se acaso me aproximo de onde possa haver embarque. E regresso às duas coisas nulas em que estou certo, de nulo também que sou – à minha vida quotidiana de transeunte incógnito, e aos meus sonhos como insônias de acordado.

E como as leituras tudo... Desde que qualquer coisa se possa sonhar como interrompendo deveras o decurso mudo dos meus dias, ergo olhos de protesto pesado para a sílfide que me é própria, aquela coitada que seria talvez sereia se tivesse aprendido a cantar.



[266]

Quando vim primeiro para Lisboa, havia, no andar lá de cima de onde morávamos, um som de piano tocado em escalas, aprendizagem monótona da menina que nunca vi. Descubro hoje que, por processos de infiltração que desconheço, tenho ainda nas caves da alma, audíveis se abrem a porta lá de baixo, as escalas repetidas, tecladas, da menina hoje senhora outra, ou morta e fechada num lugar branco onde verdejam negros os ciprestes.

Eu era criança, e hoje não o sou; o som, porém, é igual na recordação ao que era na verdade, e tem, perenemente presente, se se ergue de onde finge que dorme, a mesma lenta teclagem, a mesma rítmica monotonia. Invade-me, de o considerar ou sentir, uma tristeza difusa, angustiosa, minha.

Não choro a perda da minha infância; choro que tudo, e nele a (minha) infância, se perca. É a fuga abstrata do tempo, não a fuga concreta do tempo que é meu, que me dói no cérebro físico pela recorrência repetida, involuntária, das escalas do piano lá de cima, terrivelmente anônimo e longínquo. É todo o mistério de que nada dura que martela repetidamente coisas que não chegam a ser música, mas são saudade, no fundo absurdo da minha recordação.

Insensivelmente, num erguer visual, vejo a saleta que nunca vi, onde a aprendiz a que não conheci está ainda hoje relatando, dedo a dedo cuidadosos, as escalas sempre iguais do que já está morto. Vejo, vou vendo mais, reconstruo vendo. E todo o lar lá do andar de cima, saudoso hoje mas não ontem, vem erguendo-se fictício da minha contemplação desentendida.

Suponho, porém, que nisto tudo sou translato, que a saudade que sinto não é bem minha, nem bem abstrata, mas a emoção interceptada de não sei que terceiro, a quem estas emoções, que em mim são literárias, fossem – di-lo-ia Vieira – literais. E na minha suposição de sentir que me magôo e angustio, e as saudades, a cuja sensação se me mareiam os olhos próprios, é por imaginação e outridade que as penso e sinto.

E sempre, com uma constância que vem do fundo do mundo, com uma persistência que estuda metafisicamente, soam, soam, soam, as escalas de quem aprende piano, pela espinha dorsal física da minha recordação. São as ruas antigas com outra gente, hoje as mesmas ruas diversas; são pessoas mortas que me estão falando, através da transparência da falta delas hoje; são remorsos do que fiz ou não fiz, sons de regatos na noite, ruídos lá em baixo na casa queda.

Tenho ganas de gritar dentro da cabeça. Quero parar, esmagar, partir esse impossível disco gramofônico que soa dentro de mim em casa alheia, torturador intangível. Quero mandar parar a alma, para que ela, como veículo que me ocupassem, siga para diante só e me deixe. Endoideço de ter que ouvir. E por fim sou eu, no meu cérebro odientamente sensível, na minha pele pelicular, nos meus nervos postos à superfície, as teclas tecladas em escalas, ó piano horroroso e pessoal da nossa recordação.

E sempre, sempre, como que numa parte do cérebro que se tornasse independente, soam, soam, soam escalas lá em baixo, lá em cima, da primeira casa de Lisboa onde vim habitar.



[267]

É a ultima morte do Capitão Nemo. Em breve morrerei também.

Foi toda a minha infância passada que nesse momento ficou privada de poder durar.



[268]

O olfato é uma vista estranha. Evoca paisagens sentimentais por um desenhar súbito do subconsciente. Tenho sentido isto muitas vezes. Passo numa rua. Não vejo nada, ou antes, olhando tudo, vejo como toda a gente vê. Sei que vou por uma rua e não sei que ela existe com lados feitos de casas diferentes e construídas por gente humana. Passo numa rua. De uma padaria sai um cheiro a pão que nauseia por doce no cheiro dele: e a minha infância ergue-se de determinado bairro distante, e outra padaria me surge daquele reino das fadas que é tudo que se nos morreu. Passo numa rua. Cheira de repente às frutas do tabuleiro inclinado da loja estreita; e a minha breve vida de campo, não sei já quando nem onde, tem árvores ao fim e sossego no meu coração, indiscutivelmente menino. Passo uma rua. Transtorna-me, sem que eu espere, um cheiro aos caixotes do caixoteiro: ó meu Cesário, apareces-me e eu sou enfim feliz porque regressei, pela recordação, à única verdade, que é a literatura.



[269]

Ter já lido os Pickwick Papers é uma das grandes tragédias da minha vida. (Não posso tornar a relê-los.)



[270]

A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos. Enquanto sentimos os males e as injúrias de Hamlet, príncipe da Dinamarca, não sentimos os nossos – vis porque são nossos e vis porque são vis.

O amor, o sono, as drogas e intoxicantes, são formas elementares da arte, ou, antes, de produzir o mesmo efeito que ela. Mas amor, sono e drogas têm cada um a sua desilusão. O amor farta ou desilude. Do sono desperta-se, e, quando se dormiu, não se viveu. As drogas pagam-se com a ruína de aquele mesmo físico que serviram de estimular. Mas na arte não há desilusão porque a ilusão foi admitida desde o princípio. Da arte não há despertar, porque nela não dormimos, embora sonhássemos. Na arte não há tributo ou multa que paguemos por ter gozado dela.

O prazer que ela nos oferece, como em certo modo não é nosso, não temos nós que pagá-lo ou que arrepender-nos dele.

Por arte entende-se tudo que nos delicia sem que seja nosso – o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objetivo.

Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua essência.



[271]

Não o amor, mas os arredores é que vale a pena...

A repressão do amor ilumina os fenômenos dele com muito mais clareza que a mesma experiência. Há virgindades de grande entendimento. Agir compensa mas confunde. Possuir é ser possuído, e portanto perder-se. Só a idéia atinge, sem se estragar, o conhecimento da realidade.



[272]

Cristo é uma forma da emoção.

No panteão há lugar para os deuses que se excluem uns aos outros, e todos têm assento e regência. Cada um pode ser tudo, porque aqui não há limites, nem até lógicos, e gozamos, no convívio de vários eternos, da coexistência de diferentes infinitos e de diversas eternidades.



[273]

A história nega as coisas certas. Há períodos de ordem em que tudo é vil e períodos de desordem em que tudo é alto. As decadências são férteis em virilidade mental; as épocas de força em fraqueza do espírito. Tudo se mistura e se cruza, e não há verdade senão no supô-la.

Tantos nobres ideais caídos entre o estrume, tantas ânsias verdadeiras extraviadas entre o enxurro!

Para mim são iguais, deuses ou homens, na confusão prolixa do destino incerto. Desfilam-me, neste quarto andar incógnito, em sucessões de sonhos, e não são mais para mim do que foram para os que acreditaram neles. Manipansos dos negros de olhos incertos e espantados, deuses-bichos dos selvagens de sertões emaranhados, símbolos figurados de egípcios, claras divindades gregas, hirtos deuses romanos, Mitra senhor do Sol e da emoção, Jesus senhor da conseqüência e da caridade, critérios vários do mesmo Cristo, santos novos deuses das novas vilas, todos desfilam, todos, na marcha fúnebre (romaria ou enterro) do erro e da ilusão. Marcham todos, e atrás deles marcham, sombras vazias, os sonhos que, por serem sombras no chão, os piores sonhadores julgam que estão assentes sobre a terra – pobres conceitos sem alma nem figura, Liberdade, Humanidade, Felicidade, o Futuro Melhor, a Ciência Social, e arrastam-se na solidão da treva como folhas movidas um pouco para a frente por uma cauda de manto régio que houvesse sido roubado por mendigos.



[274]

Ah, é um erro doloroso e crasso aquela distinção que os revolucionários estabelecem entre burgueses e povo, ou fidalgos e povo, ou governantes e governados. A distinção é entre adaptados e inadaptados: o mais é literatura, e má literatura. O mendigo, se é adaptado, pode amanhã ser rei, porém perdeu com isso a virtude de ser mendigo. Passou a fronteira e perdeu a nacionalidade.

Isto me consola neste escritório estreito, cujas janelas mal lavadas dão sobre uma rua sem alegria. Isto me consola, em o qual tenho por irmãos os criadores da consciência do mundo – o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o mestre-escola John Milton, o vadio Dante Alighieri, e até, se a citação se permite, aquele Jesus Cristo que não foi nada no mundo, tanto que se duvida dele pela história. Os outros são de outra espécie – o conselheiro de estado Johann Wolfgang von Goethe, o senador Victor Hugo, o chefe Lenine, o chefe Mussolini.

Nós na sombra, entre os moços de fretes e os barbeiros, constituímos a humanidade.

De um lado estão os reis, com o seu prestígio, os imperadores, com a sua glória, os gênios, com a sua aura, os santos, com a sua auréola, os chefes do povo, com o seu domínio, as prostitutas, os profetas e os ricos... Do outro estamos nós – o moço de fretes da esquina, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o barbeiro das anedotas, o mestre-escola John Milton, o marçano da tenda, o vadio Dante Alighieri, os que a morte esquece ou consagra, e [a] vida esqueceu sem consagrar.



[275]

O governo do mundo começa em nós mesmos. Não são os sinceros que governam o mundo, mas também não são os insinceros. São os que fabricam em si uma sinceridade real por meios artificiais e automáticos; essa sinceridade constitui a sua força, e é ela que irradia para a sinceridade menos falsa dos outros. Saber iludir-se bem é a primeira qualidade do estadista. Só aos poetas e aos filósofos compete a visão prática do mundo, porque só a esses é dado não ter ilusões. Ver claro é não agir.



[276]

Uma opinião é uma grosseria, mesmo quando não é sincera.

Toda a sinceridade é uma intolerância. Não há liberais sinceros. De resto, não há liberais.



[277]

Tudo ali é quebrado, anônimo e impertencente. Vi ali grandes movimentos de ternura, que me pareceram revelar o fundo de pobres almas tristes; descobri que esses movimentos não duravam mais que a hora em que eram palavras, e que tinham raiz – quantas vezes o notei com a sagacidade dos silenciosos – na analogia de qualquer coisa com o piedoso, perdida com a rapidez da novidade da notação, e, outras vezes, no vinho do jantar do enternecido. Havia sempre uma relação sistematizada entre os humanitarismos e a aguardente de bagaço, e foram muitos os grandes gestos que sofreram do copo supérfluo ou do pleonasmo da sede.

Essas criaturas tinham todas vendido a alma a um diabo da plebe infernal, avarento de sordidezas e de relaxamentos. Viviam a intoxicação da vaidade e do ócio, e morriam molemente, entre coxins de palavras, num amarfanhamento de lacraus de cuspo.

O mais extraordinário de toda essa gente era a nenhuma importância, em nenhum sentido, de toda ela. Uns eram redatores dos principais jornais, e conseguiam não existir; outros tinham lugares públicos em vista no anuário e conseguiam não figurar em nada da vida; outros eram poetas até consagrados, mas uma mesma poeira de cinza lhes tornava lívidas as faces parvas, e tudo era um túmulo de embalsamados hirtos, postos com a mão nas costas em posturas de vidas.

Guardo do pouco tempo que me estagnei nesse exílio da esperteza mental uma recordação de bons momentos de graça franca, de muitos momentos monótonos e tristes, de alguns perfis recortados no nada, de alguns gestos dados às serventes do acaso, e, em resumo, um tédio de náusea física e a memória de algumas anedotas com espírito.

Neles se intercalavam, como espaços, uns homens de mais idade, alguns com ditos de espírito pregresso, que diziam mal como os outros, e das mesmas pessoas.

Nunca senti tanta simpatia pelos inferiores da glória pública como quando os vi malsinar por estes inferiores sem querer essa pobre glória. Reconheci a razão do triunfo porque os párias do Grande triunfavam em relação a estes, e não em relação à humanidade.

Pobres diabos sempre com fome – ou com fome de almoço, ou com fome de celebridade, ou com fome das sobremesas da vida. Quem os ouve, e os não conhece, julga estar escutando os mestres de Napoleão e os instrutores de Shakespeare.

Há os que vencem no amor, há os que vencem na política, há os que vencem na arte. Os primeiros têm a vantagem da narrativa, pois se pode vencer largamente no amor sem haver conhecimento célebre do que sucedeu. É certo que, ao ouvir contar a qualquer desses indivíduos as suas Maratonas sexuais, uma vaga suspeita nos invade, pela altura do sétimo desfloramento. Os que são amantes de senhoras de título, ou muito conhecidas (são, aliás, quase todos), fazem um tal gasto de condessas que uma estatística das suas conquistas não deixaria sérias e comedidas nem as bisavós dos títulos presentes.

Outros especializam no conflito físico, e mataram os campeões de boxe da Europa numa noite de pândega, à esquina do Chiado. Uns são influentes junto de todos os ministros de todos os ministérios, e estes são aqueles de que menos há que duvidar, pois não repugna.

Uns são grandes sádicos, outros são grandes pederastas, outros confessam, com uma tristeza de voz alta, que são brutais com mulheres. Trouxeram-nas ali, a chicote, pelos caminhos da vida. No fim ficam a dever o café.

Há os poetas, há-os.

Não conheço melhor cura para toda esta enxurrada de sombras que o conhecimento direito da vida humana corrente, na sua realidade comercial, por exemplo, como a que surge no escritório da Rua dos Douradores. Com que alívio eu volvia daquele manicômio de títeres para a presença real do Moreira, meu chefe, guarda-livros autêntico e sabedor, mal vestido e mal tratado, mas, o que nenhum dos outros conseguia ser, o que se chama um homem...



[278]

A maioria dos homens vive com espontaneidade uma vida fictícia e alheia.

A maioria da gente é outra gente, disse Oscar Wilde, e disse bem. Uns gastam a vida na busca de qualquer coisa que não querem; outros empregam-se na busca do que querem e lhes não serve; outros, ainda, se perdem.

Mas a maioria é feliz e goza a vida sem isso valer. Em geral, o homem chora pouco, e, quando se queixa, é a sua literatura. O pessimismo tem pouca viabilidade como fórmula democrática. Os que choram o mal do mundo são isolados – não choram senão o próprio. Um Leopardi, um Antero não têm amado ou amante? O universo é um mal. Um Vigny é mal ou pouco amado? O mundo é um cárcere. Um Chateaubriand sonha mais que o possível? A vida humana é tédio. Um Job é coberto de bolhas? A terra está coberta de bolhas. Pisam os calos do triste? Ai dos pés dos sóis e das estrelas.

Alheia a isto, e chorando só o preciso e no menos tempo que pode – quando lhe morre o filho que esquecerá pelos anos fora, salvo nos aniversários; quando perde dinheiro e chora enquanto não arranja outro, ou se não adapta ao estado de perda – a humanidade continua digerindo e amando.

A vitalidade recupera e reanima. Os mortos ficam enterrados. As perdas ficam perdidas.



[279]

Foi-se hoje embora, diz-se que definitivamente, para a terra que é natal dele, o chamado moço do escritório, aquele mesmo homem que tenho estado habituado a considerar como parte desta casa humana, e, portanto, como parte de mim e do mundo que é meu. Foi-se hoje embora. No corredor, encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida, dei-lhe eu um abraço timidamente retribuído, e tive contra-alma bastante para não chorar, como, em meu coração, desejavam sem mim meus olhos quentes.

Cada coisa que foi nossa, ainda que só pelos acidentes do convívio ou da visão, porque foi nossa se torna nós. O que se partiu hoje, pois, para uma terra galega que ignoro, não foi, para mim, o moço do escritório: foi uma parte vital, porque visual e humana, da substância da minha vida. Fui hoje diminuído. Já não sou bem o mesmo. O moço do escritório foi-se embora.

Tudo que se passa no onde vivemos é em nós que se passa. Tudo que cessa no que vemos é em nós que cessa. Tudo que foi, se o vimos quando era, é de nós que foi tirado quando se partiu. O moço do escritório foi-se embora.

É mais pesado, mais velho, menos voluntário que me sento à carteira alta e começo a continuação da escrita de ontem. Mas a vaga tragédia de hoje interrompe com meditações, que tenho que dominar à força, o processo automático da escrita como deve ser. Não tenho alma para trabalhar senão porque posso com uma inércia ativa ser escravo de mim. O moço do escritório foi-se embora.

Sim, amanhã, ou outro dia, ou quando quer que soe para mim o sino sem som da morte ou da ida, eu também serei quem aqui já não está, copiador antigo que vai ser arrumado no armário por baixo do vão da escada. Sim, amanhã, ou quando o Destino disser, terá fim o que fingiu em mim que fui eu. Irei para a terra natal? Não sei para onde irei. Hoje a tragédia é visível pela falta, sensível por não merecer que se sinta. Meu Deus, meu Deus, o moço do escritório foi-se embora.



[280]

Ó noite onde as estrelas mentem luz, ó noite, única coisa do tamanho do Universo, torna-me, corpo e alma, parte do teu corpo, que eu me perca em ser mera treva e me torne noite também, sem sonhos que sejam estrelas em mim, nem sol esperado que ilumine do futuro.



[281]

Primeiro é um som que faz um outro som, no côncavo noturno das coisas. Depois é um uivo vago, acompanhado pelo oscilar rasco das tabuletas da rua. Depois, ainda, há um alto de súbito na voz urrada do espaço, e tudo estremece, e não oscila, e há silêncio no medo disto tudo como um medo surdo que vê outro medo quando passado.

Depois não há mais nada senão o vento – só o vento, e reparo com sono que as portas estremecem presas e as janelas dão som de vidro que resiste.

Não durmo. Entresou. Tenho vestígios na consciência. Pesa em mim o sono sem que a inconsciência pese... Não sou. O vento... Acordo e redurmo e ainda não dormi. Há uma paisagem de som alto e torvo para além de que me desconheço. Gozo, recatado, a possibilidade de dormir. Com efeito durmo, mas não sei se durmo. Há sempre no que julgamos que é o som um som de fim de tudo, o vento no escuro, e, se escuto ainda, o som comigo dos pulmões e do coração.



[282]

Depois que o fim dos astros esbranqueceu para nada no céu matutino, e a brisa se tornou menos fria no amarelo mal alaranjado da luz sobre as poucas nuvens baixas, pude enfim, eu que não dormira, erguer lentamente o corpo exausto de nada da cama de onde pensara o universo.

Cheguei à janela com os olhos quentes de não estarem fechados. Por sobre os telhados densos a luz fazia diferenças de amarelo pálido. Fiquei a contemplar tudo com a grande estupidez da falta de sono. Nos vultos erguidos das casas altas o amarelo era aéreo e nulo. Ao fundo do ocidente, para onde eu estava virado, o horizonte era já de um branco verde.

Sei que o dia vai ser para mim pesado como não perceber nada. Sei que tudo quanto hoje fizer vai participar, não do cansaço do sono que não tive, mas da insônia que tive. Sei que vou viver um sonambulismo mais acentuado, mais epidérmico, não só porque não dormi, mas porque não pude dormir.

Há dias que são filosofias, que nos insinuam interpretações da vida, que são notas marginais, cheias de grande crítica, no livro do nosso destino universal. Este dia é um dos que sinto tais. Parece-me, absurdamente, que é com meus olhos pesados e meu cérebro nulo que, lápis absurdo, se vão traçando as letras do comentário inútil e profundo.



[283]

A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti, se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.

Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.

A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.

Por isso a morte enobrece, veste de galas desconhecidas o pobre corpo absurdo. É que ali está um liberto, embora o não quisesse ser. É que ali não está um escravo, embora ele chorando perdesse a servidão. Como um rei cuja maior pompa é o seu nome de rei, e que pode ser risível como homem, mas como rei é superior, assim o morto pode ser disforme, mas é superior, porque a morte o libertou.

Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis.

Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído.



[284]

Não toquemos na vida nem com as pontas dos dedos.

Não amemos nem com o pensamento.

Que nenhum beijo de mulher, nem mesmo em sonhos, seja uma sensação nossa.

Artífices da morbidez, requintemo-nos em ensinar a desiludir-se.

Curiosos da vida, espreitemos a todos os muros, antecansados de saber que não vamos ver nada de novo ou belo.

Tecelões da desesperança, teçamos mortalhas apenas – mortalhas brancas para os sonhos que nunca sonhamos, mortalhas negras para os dias que morremos, mortalhas cor de cinza para os gestos que apenas sonhamos, mortalhas imperiais – de  púrpura – para as nossas sensações inúteis.

Pelos montados e pelos vales e pelas margens dos pântanos, caçam caçadores o lobo e a corça, e o pato-bravo também. Odiemo-los, não porque caçam, mas porque gozam (e nós não gozamos).

Seja a expressão do nosso rosto um sorriso pálido, como de alguém que vai chorar, um olhar vago, como de alguém que não quer ver, um desdém esparso por todas as feições, como o de alguém que despreza a vida e a vive apenas para ter que desprezar. E seja o nosso desprezo para os que trabalham e lutam e o nosso ódio para os que esperam e confiam.



[285]

Estou quase convencido de que nunca estou desperto. Não sei se não sonho quando vivo, se não vivo quando sonho, ou se o sonho e a vida não são em mim coisas mistas, intersecionadas, de que meu ser consciente se forme por interpenetração.

Às vezes, em plena vida ativa, em que, evidentemente, estou tão claro de mim como todos os outros, vem até à minha suposição uma sensação estranha de dúvida; não sei se existo, sinto possível o ser um sonho de outrem, afigura-se-me, quase carnalmente, que poderei ser personagem de uma novela, movendo-me, nas ondas longas de um estilo, na verdade feita de uma grande narrativa.

Tenho reparado, muitas vezes, que certas personagens de romance tomam para nós um relevo que nunca poderiam alcançar os que são nossos conhecidos e amigos, os que falam conosco e nos ouvem na vida visível e real. E isto faz com que sonhe a pergunta se não será tudo neste total de mundo uma série entreinserta de sonhos e romances, como caixinhas dentro de caixinhas maiores – umas dentro de outras e estas em mais –, sendo tudo uma história com histórias, como as Mil e Uma Noites, decorrendo falsa na noite eterna.

Se penso, tudo me parece absurdo; se sinto, tudo me parece estranho; se quero, o que quer é qualquer coisa em mim. Sempre que em mim há ação, reconheço que não fui eu. Se sonho, parece que me escrevem. Se sinto, parece que me pintam. Se quero, parece que me põem num veículo, como a mercadoria que se envia, e que sigo com um movimento que julgo próprio para onde não quis que fosse senão depois de lá estar.

Que confusão é tudo! Como ver é melhor que pensar, e ler melhor que escrever! O que vejo, pode ser que me engane, porém não o julgo meu. O que leio, pode ser que me pese, mas não me perturba o tê-lo escrito. Como tudo dói se o pensamos como conscientes de pensar, como seres espirituais em quem se deu aquele segundo desdobramento da consciência pelo qual sabemos que sabemos! Embora o dia esteja lindíssimo, não posso deixar de pensar assim... Pensar ou sentir, ou que coisa terceira entre os cenários postos de parte? Tédios do crepúsculo e do desalinho, leques fechados, cansaço de ter tido que viver...



[286]

Passávamos, jovens ainda, sob as árvores altas e o vago sussurro da floresta.

Nas clareiras, subitamente surgidas do acaso do caminho, o luar fazia-as lagos e as margens, emaranhadas de ramos, eram mais noite que a mesma noite. A brisa vaga dos grandes bosques respirava com som entre o arvoredo.

Falávamos das coisas impossíveis; e as nossas vozes eram parte da noite, do luar e da floresta. Ouvíamo-las como se fossem de outros.

Não era bem sem caminhos a floresta incerta. Havia atalhos que, sem querer, conhecíamos, e os nossos passos ondeavam neles entre os mosqueamentos das sombras e o palhetar vago do luar duro e frio. Falávamos das coisas impossíveis e toda a paisagem real era impossível também.



[287]

Adoramos a perfeição, porque a não podemos ter; repugna-la-íamos, se a tivéssemos. O perfeito é o desumano, porque o humano é imperfeito.

O ódio surdo ao paraíso – o desejo como o da pobre infeliz de [que] houvesse campo no céu. Sim, não são os êxtases do abstrato, nem as maravilhas do absoluto que podem encantar uma alma que sente: são os lares e as encostas dos montes, as ilhas verdes nos mares azuis, os caminhos através de árvores e as largas horas de repouso nas quintas ancestrais, ainda que as nunca tenhamos. Se não houver terra no céu, mais vale não haver céu. Seja então tudo o nada, e acabe o romance que não tinha enredo.

Para poder obter a perfeição fora precisa uma frieza de fora do homem e não haveria então coração de homem com que amar a própria perfeição.

Pasmamos, adorando, da tensão para o perfeito dos grandes artistas.

Amamos a sua aproximação do perfeito, porém a amamos porque é só aproximação.



[288]

Que tragédia não acreditar na perfectibilidade humana!...

– E que tragédia acreditar nela!



[289]

Se eu tivesse escrito o Rei Lear, levaria com remorsos toda a minha vida de depois. Porque essa obra é tão grande, que enormes avultam os seus defeitos, os seus monstruosos defeitos, as coisas até mínimas que estão entre certas cenas e a perfeição possível delas. Não é o sol com manchas; é uma estátua grega partida. Tudo quanto tem sido feito está cheio de erros, de faltas de perspectiva, de ignorâncias, de traços de mau gosto, de fraquezas e desatenções. Escrever uma obra de arte com o preciso tamanho para ser grande, e a precisa perfeição para ser sublime, ninguém tem o divino de o fazer, a sorte de o ter feito. O que não pode ir de um jato sofre do acidentado do nosso espírito.

Se penso nisto entra com minha imaginação um desconsolo enorme, uma dolorosa certeza de nunca poder fazer nada de bom e útil para a Beleza. Não há método de obter a Perfeição exceto ser Deus. O nosso maior esforço dura tempo; o tempo que dura atravessa diversos estados da nossa alma, e cada estado de alma, como não é outro, qualquer, perturba com a sua personalidade a individualidade da obra. Só temos a certeza de escrever mal, quando escrevemos; a única obra grande e perfeita é aquela que nunca se sonhe realizar.

Escuta-me ainda, e compadece-te. Ouve tudo isto e diz-me depois se o sonho não vale mais que a vida. O trabalho nunca dá resultado. O esforço nunca chega a parte nenhuma. Só a abstenção é nobre e alta, porque ela é a que reconhece que a realização é sempre inferior, e que a obra feita é sempre a sombra grotesca da obra sonhada.

Poder escrever, em palavras sobre papel, que se possam depois ler alto e ouvir, os diálogos das personagens dos meus dramas imaginados! Esses dramas têm uma ação perfeita e sem quebra, diálogos sem falha, mas nem a ação se esboça em mim em comprimento, para que eu a possa projetar em realização; nem são propriamente palavras o que forma a substância desses diálogos íntimos, para que, ouvidas com atenção, eu as possa traduzir para escritas.

Amo alguns poetas líricos porque não foram poetas épicos ou dramáticos, porque tiveram a justa intuição de nunca querer mais realização do que a de um momento de sentimento ou de sonho. O que se pode escrever inconscientemente – tanto mede o possível perfeito. Nenhum drama de Shakespeare satisfaz como uma lírica de Heine. É perfeita a lírica de Heine, e todo o drama – de um Shakespeare ou de outro, é imperfeito sempre. Poder construir, erguer um Todo, compor uma coisa que seja como um corpo humano, com perfeita correspondência nas suas partes, e com uma vida, uma vida de unidade e congruência, unificando a dispersão de feitios das duas partes!

Tu, que me ouves e mal me escutas, não sabes o que é esta tragédia! Perder pai e mãe, não atingir a glória nem a felicidade, não ter um amigo nem um amor – tudo isso se pode suportar; o que se não pode suportar é sonhar uma coisa bela que não seja possível conseguir em ato ou palavras. A consciência do trabalho perfeito, a fartura da obra obtida – suave é o sono sob essa sombra de árvore, no verão calmo.



[290]

As frases que nunca escreverei, as paisagens que não poderei nunca descrever, com que clareza as dito à minha inércia e as descrevo na minha meditação, quando, recostado, não pertenço, senão longinquamente, à vida. Talho frases inteiras, perfeitas palavra a palavra, contexturas de dramas narram-se-me construídas no espírito, sinto o movimento métrico e verbal de grandes poemas em todas as palavras e um grande entusiasmo, como um escravo que não vejo, segue-me na penumbra. Mas se der um passo, da cadeira, onde jazo estas sensações quase cumpridas, para a mesa onde quereria escrevê-las, as palavras fogem, os dramas morrem, do nexo vital que uniu o murmúrio rítmico não fica mais que uma saudade longínqua, um resto de sol sobre montes afastados, um vento que ergue as folhas ao pé do limiar deserto, um parentesco nunca revelado, a orgia dos outros, a mulher, que a nossa intuição diz que olharia para trás, e nunca chega a existir.

Projetos, tenho-os tido todos. A Ilíada que compus teve uma lógica de estrutura, uma concatenação orgânica de epodos que Homero não podia conseguir. A perfeição estudada dos meus versos por completar em palavras deixa pobre a precisão de Virgílio e frouxa a força de Milton. As sátiras alegóricas que fiz excederam todas a Swift na precisão simbólica dos particulares exatamente ligados. Quantos Verlaines fui!

E sempre que me levantei da cadeira onde, na verdade, estas coisas não foram absolutamente sonhadas, tive a dupla tragédia de as saber nulas e de saber que não foram todas sonho, que alguma coisa ficou delas no limiar abstrato em eu pensar e elas serem.

Fui gênio mais que nos sonhos e menos que na vida. A minha tragédia é esta. Fui o corredor que caiu quase na meta, sendo até aí o primeiro.



[291]

Se houvesse na arte o mister de aperfeiçoador, eu teria na vida (da minha arte) uma função...

Ter a obra feita por outrem, e trabalhar só em aperfeiçoá-la... Assim, talvez, foi feita a Ilíada...

Só o não ter o esforço da criação primitiva!

Como invejo os que escrevem romances, que os começam, e os fazem, e os acabam! Sei imaginá-los, capítulo a capítulo, por vezes com as frases do diálogo e as que estão entre o diálogo, mas não saberia dizer no papel esses sonhos de escrever.



[292]

Tudo quanto é ação, seja a guerra ou o raciocínio, é falso; e tudo quanto é abdicação é falso também. Pudesse eu saber como não agir nem abdicar de agir! Seria essa a coroa-de-sonho da minha glória, o cetro-de-silêncio da minha grandeza.

Eu nem sofro. O meu desdém por tudo é tão grande que me desdenho a mim próprio; que, como desprezo os sofrimentos alheios, desprezo também os meus, e assim esmago sob o meu desdém o meu próprio sofrimento.

Ah, mas assim sofro mais... Porque dar valor ao próprio sofrimento põe-lhe o ouro dum sol do orgulho. Sofrer muito pode dar a ilusão de ser o Eleito da Dor. Assim



[293]

Intervalo doloroso

Como alguém cujos olhos, erguidos de um longo, de um livro, receba[m] a violência para eles de um mero claro sol natural, se ergo às vezes de mim os meus olhos de ver-me dói-me e arde-me fitar a nitidez e independência-de-mim da vida claramente externa, da existência dos outros, da posição e correlação dos movimentos no espaço. Tropeço nos sentimentos reais dos outros, o antagonismo dos seus psiquismos com o meu entala-me e entaramela-me os passos, escorrego e destrambelho-me por entre e por sobre o som das suas palavras estranhas a ser ouvido em mim, o apoio forte e certo dos seus passos no chão atual, os seus gestos que existem verdadeiramente, os seus vários e complexos modos de serem outras pessoas que não variantes da minha.

Encontro-me então, nestas almas em que me precipito às vezes, desamparado e oco, parecendo que morri e vivo, pálida sombra dolorida, que a primeira brisa deitará por terra e o primeiro contato desfará em pó.

Pergunto então em mim próprio se valerá a pena todo o esforço que pus em me isolar e elevar, se o lento calvário que de mim fiz para a minha Glória Crucificada valerá religiosamente a pena? E, ainda que saiba que valeu, pesa-me nesse momento o sentimento de que não valeu, de que não valerá nunca.



[294]

O dinheiro, as crianças (os doidos)

Nunca se deve invejar a riqueza, senão platonicamente; a riqueza é liberdade.



[295]

O dinheiro é belo, porque é uma libertação.

Querer ir morrer a Pequim e não poder é das coisas que pesam sobre mim como a idéia dum cataclismo vindouro.

Os compradores de coisas inúteis sempre são mais sábios do que se julgam – compram pequenos sonhos. São crianças no adquirir. Todos os pequenos objetos inúteis cujo acenar ao saberem que têm dinheiro os faz comprá-los, possuem-os na atitude feliz de uma criança que apanha conchinhas na praia – imagem que mais do que nenhuma dá toda a felicidade possível. Apanha conchas na praia! Nunca há duas iguais para a criança. Adormece com as duas mais bonitas na mão, e quando lhas perdem ou tiram – o crime! roubar-lhe bocados exteriores da alma! arrancar-lhe pedaços de sonho! – chora como um Deus a quem roubassem um universo recém-criado.



[296]

A mania do absurdo e do paradoxo é a alegria animal dos tristes. Como o homem normal diz disparates por vitalidade, e por sangue dá palmadas nas costas de outros, os incapazes de entusiasmo e de alegria dão cambalhotas na inteligência e, a seu modo, fazem os gestos da vida.



[297]

A reductio ad absurdum é uma das minhas bebidas prediletas.



[298]

Tudo é absurdo. Este empenha a vida em ganhar dinheiro que guarda, e nem tem filhos a quem o deixe nem esperança que um céu lhe reserve uma transcendência desse dinheiro. Aquele empenha o esforço em ganhar fama, para depois de morto, e não crê naquela sobrevivência que lhe dê o conhecimento da fama. Esse outro gasta-se na procura de coisas de que realmente não gosta. Mais adiante, há um que lê para saber, inutilmente. Outro goza para viver, inutilmente.

Vou num carro elétrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os pormenores das pessoas que vão adiante de mim. Para mim os pormenores são coisas, vozes, letras. Neste vestido da rapariga que vai em minha frente decomponho o vestido em o estofo de que se compõe, o trabalho com que o fizeram – pois que o vejo vestido e não estofo – e o bordado leve que orla a parte que contorna o pescoço separa-se-me em retrós de seda, com que se o bordou, e o trabalho que houve de o bordar. E imediatamente, como num livro primário de economia política, desdobram-se diante de mim as fábricas e os trabalhos – a fábrica onde se fez o tecido; a fábrica onde se fez o retrós, de um tom mais escuro, com que se orla de coisinhas retorcidas o seu lugar junto do pescoço; e vejo as seções das fábricas, as máquinas, os operários, as costureiras, meus olhos virados para dentro penetram nos escritórios, vejo os gerentes procurar estar sossegados, sigo, nos livros, a contabilidade de tudo; mas não é só isto: vejo, para além, as vidas domésticas dos que vivem a sua vida social nessas fábricas e nesses escritórios... Todo o mundo se me desenrola aos olhos só porque tenho diante de mim, abaixo de um pescoço moreno, que de outro lado tem não sei que cara, um orlar irregular regular verde escuro sobre um verde claro de vestido.

Toda a vida social jaz a meus olhos.

Para além disto pressinto os amores, as secrecias [sic], a alma, de todos quantos trabalharam para que esta mulher que está diante de mim no elétrico use, em torno do seu pescoço mortal, a banalidade sinuosa de um retrós de seda verde escura fazenda verde menos escura.

Entonteço. Os bancos do elétrico, de um entretecido de palha forte e pequena, levam-me a regiões distantes, multiplicam-se-me em indústrias, operários, casas de operários, vidas, realidades, tudo.

Saio do carro exausto e sonâmbulo. Vivi a vida inteira.



[299]

Cada vez que viajo, viajo imenso. O cansaço que trago comigo de uma viagem de comboio até Cascais é como se fosse o de ter, nesse pouco tempo, percorrido as paisagens de campo e cidade de quatro ou cinco países.

Cada casa por que passo, cada chalé, cada casita isolada caiada de branco e de silêncio – em cada uma delas num momento me concebo vivendo, primeiro feliz, depois tediento, cansado depois; e sinto que tendo-a abandonado, trago comigo uma saudade enorme do tempo em que lá vivi. De modo que todas as minhas viagens são uma colheita dolorosa e feliz de grandes alegrias, de tédios enormes, de inúmeras falsas saudades.

Depois, ao passar diante de casas, de vilas, de chalés, vou vivendo em mim todas as vidas das criaturas que ali estão. Vivo todas aquelas vidas domésticas ao mesmo tempo. Sou o pai, a mãe, os filhos, os primos, a criada e o primo da criada, ao mesmo tempo e tudo junto, pela arte especial que tenho de sentir ao mesmo [tempo] várias sensações diversas, de viver ao mesmo tempo – e ao mesmo tempo por fora, vendo-as, e por dentro sentindo-as – as vidas de várias criaturas.

Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente. Cada sonho meu é imediatamente, logo ao aparecer sonhado, encarnado numa outra pessoa, que passa a sonhá-lo, e eu não.

Para criar, destruí-me; tanto me exteriorizei dentro de mim, que dentro de mim não existo senão exteriormente. Sou a cena viva onde passam vários atores representando várias peças.

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