Nos Bastidores do Reino - A Vida Secreta na Igreja Universal do Reino de Deus - Mario Justino

Por Mario Justino...

- Ora, não se faca de imbecil! Você sabe por que tem de ir. Mas vou refrescar sua mente. Você não pode mais ficar com a gente porque tem AIDS!

Quando Edir Macedo, o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, me chamou em seu escritório, no fundo eu sabia que era isso que ele me diria. Dois meses antes eu enviara uma carta ao pastor Honorilton Gonçalves, na qual contava o meu problema. Gonçalves fora um grande amigo, desde os meus dezesseis anos, quando fui transferido do Rio para ser pastor na Bahia, estado em que ele era o vice-líder.

Gonçalves agora era líder nacional, e, em nome da nossa antiga amizade, pensei nele como alguém que podia me ajudar a sair daquele estado de torpeza e confusão. Na carta, contei a ele tudo o que estava acontecendo comigo. Disse, inclusive, que achava estar com "aquela doença incurável".



Por varias semanas esperei pela resposta do pastor Gonçalves. Nunca chegou. Em compensação, fui chamado ao escritório do bispo Edir Macedo, que, a época, encontrava-se em Nova York fugindo das acusações de charlatanismo feitas pela polícia de São Paulo. Com o conhecido olhar que aterrorizava seus subalternos, o bispo ordenou que eu juntasse minhas coisas e fosse embora. Eu não interessava mais a Igreja Universal do Reino de Deus. Pior, podia "comprometê-la". Ao insistir em saber por que estava sendo varrido da Igreja depois de onze anos de serviços prestados, recebi do bispo aquela resposta áspera, bem no estilo dele.

Disse que não tinha para onde ir e implorei que ao menos me mandasse de volta para o Brasil. Respondeu-me afirmando que eu tinha uma passagem de volta e que deveria usá-la. Mas não existia passagem alguma. A passagem com que tinha ido do Brasil para Portugal fora obtida numa promoção e tinha apenas três meses de validade. Como permaneci em Lisboa por quase um ano, perdera a validade. O mesmo acontecera com a passagem de Lisboa para Nova York.

Inutilmente, disse que escrevera a carta num momento de desespero e que não tinha certeza se estava mesmo com a doença. Não adiantou. Ele se mostrou irredutível diante das minhas suplicas e explicações. Nada poderia demove-lo da idéia de me punir severamente.

Ao sair do escritório do bispo, a primeira coisa que me veio a cabeça foi ligar para Eliane. Disse-lhe que algo terrível me havia acontecido e que precisava de sua ajuda. Ela me recebeu em sua casa sem ao menos perguntar o motivo pelo qual a Igreja estava sendo tão severa e cruel comigo. Fiquei lá por uma semana. Depois, tornei a implorar ao bispo Macedo para que me desse algum dinheiro ou me mandasse de volta para o Brasil.

Inflexível como sempre, o que achava ser uma virtude, o bispo não voltou atrás:

- Aqui, ó!!! - disse ele, ao mesmo tempo que desferia uma "banana", aquele clássico gesto em que, erguido, o punho cerrado assume a forma de um imenso pênis em estado de ereção.

Depois do que acabara de experimentar, comecei a caminhar feito um desnorteado pelas ruas da cidade. Com passadas largas e firmes, tentava entender o que estava acontecendo comigo. Uma das razoes pelas quais me tornara uma das figuras mais populares dentro da imensa comunidade da Igreja Universal tinha sido exatamente a habilidade com que conseguira me movimentar, a habilidade para contornar problemas e sempre ter, nas situações difíceis, a tal carta escondida na manga. Agora, no entanto, todo aquele jogo de cintura também parecia ter virado as costas para mim. Sentia-me inteiramente impotente. Desarmado. Tudo o que queria era chorar. E nem isso conseguia.

Não levaram muito tempo para descobrir que Eliane estava me abrigando. Ao regressar à casa, encontrei o pastor Natanael. Ele estava ali a mando do Bispo. Queria checar meus pertences. Natanael disse que depois da minha saída fora notado o sumiço de um gravador, que era usado para gravar testemunhos dos milagres de Macedo. Desconfiavam que eu havia roubado o equipamento. Ao tentar impedi-lo de revistar minha mochila, atracamo-nos em uma inglória (para mim, dado o meu estado cambaleante) luta corporal. Enquanto isso, aos gritos, Eliane suplicava que parássemos com aquilo. Fui dominado facilmente por Natanael, que, tento rasgando a bolsa, ia chutando tudo o que caia, espalhando minhas roupas, procurando pelo gravador.

Provando uma humilhação que nunca imaginei passar, fiquei jogado num canto da sala tossindo e jurando que me vingaria de todos eles. Um por um.

- Como se você fosse viver para isso - disse Natanael com um sorriso irônico, saindo sem encontrar o que viera buscar e deixando para trás a minha figura miserável recolhida ao chão.

Não sei por quanto tempo fiquei ali, no canto daquela sala, a cabeça baixa, os olhos parados e o tempo se esvaindo diante deles. As imagens de minha trajetória na Igreja passavam velozmente pela minha mente, como num aparelho de vídeo.

O ódio me desvirginava.

Encolhido no canto, sentia-me a pior das criaturas. Rastejando no pó, como a serpente amaldiçoada. Como Lúcifer, caído em desgraça. Destituído de toda a gloria. De toda a luz.

Esforçava-me para não chorar. Seria reconhecer a vitória deles. Com um no na garganta e a respiração pesada, senti minha boca se encher de uma saliva amarga. Por entre os dentes, emitia grunhidos cujo significado nem eu mesmo sabia. Naquele momento, foi definitivamente possuído pelo pior sentimento conhecido pela raça humana. E esse sentimento, agora, iria reger a minha vida.

Meus pensamentos, que corriam longe, arrebentaram a linha tênue que separa o bom senso da loucura quando eu comecei a considerar a idéia de matar. Eu não tinha mais nada a perder. Tudo o que tivera havia escorrido por entre os meus dedos: mulher, filhos, meus pais, meus sonhos, minha fé, meu Deus. Tudo tinha ido.

A única coisa que me restara era o ódio mortal pelo bispo Macedo e sua Igreja Universal.

A idéia de matá-lo pareceu-me uma forma deliciosa de fazer justiça. Ainda fraco, levantei a cabeça e fiquei de pé. O pensamento me revigorou e me fez sentir melhor A saliva se fez doce. Havia, enfim, encontrado uma razão para continuar vivendo.


Capítulo Dois: Levíticos

Estar na Bahia pareceu-me um sonho. Eu sempre fora apaixonado por aquela terra. Não sei se a adoração por Caetano tinha alguma coisa a ver com isso, mas eu era fascinado por aquele mundo encantado de gabrielas e bataclans. No ginásio, cheguei a participar de um concurso de redação cujo vencedor ganharia um fim de semana em Salvador. Fiquei estarrecido quando a garota vencedora voltou de lá e mostrou-me as fotos. Maravilhei-me com aquelas praias, coqueiros, casarões coloniais, ruas de paralelepípedos e igrejas forradas de ouro.

Ruas repletas de gente bonita e musical. Assim era Salvador. Ou Jamaica. Os dois lugares se confundiam. Ritmos de afoxé e reggae enchiam o ar já impregnado do cheiro das frituras de dendê. Esse cheiro subia aos céus como um sacrifício de louvor aos filhos da terra a todos os orixás que povoam aquela cidade de todos os santos. Em qualquer outro lugar do mundo, agüentar aquela fumaça de óleo queimado seria insuportável. Na Bahia, não. Lá a fumaça passa quase despercebida.

No mesmo dia conheci quase todos os pontos turísticos da cidade. Sentia-me completamente familiarizado com o lugar. Tomei sorvete na Ribeira, escalei as ruas de pedras para ver as ruínas do Pelourinho, fui à igreja de O Pagador de Promessas, visitei o espelho de água negra do Abaeté e, depois de passear pelo farol da Barra e ir ao Mercado Modelo, terminei a tarde olhando o sol mergulhar na praia de Itapoã.

Ali o astral e a eletricidade do povo são contagiantes. Nada apaga o brilho da Bahia. Nem a sujeira das ruas. Nem o cheiro de urina que exala do centro histórico. Nem mesmo Antônio Carlos Magalhães, que, desbancando o Senhor do Bonfim, tomou0lhe o título e sagrou-se, além de padroeiro, o Bokassa da região. Nada tira seu brilho, Bahia. Muito menos a fumaça do acarajé dourando no azeite-de-dendê.

No dia seguinte, apresentei minhas credenciais ao pastor Paulo Roberto Vieira Guimarães. Ele era uma das mais bem polidas pratas da casa. Com apenas vinte anos, Paulo era o líder da Universal na Bahia e pastor da segunda receita no ranking nacional. A revista Plenitude, espécie de diário oficial da igreja, publicava mensalmente longas reportagens sobre o crescimento da Universal na terra do candomblé. Crescimento que era atribuído à "sede do povo baiano por um Deus real e à liderança competente do pastor Paulo Roberto".

Ele havia conhecido a Igreja por intermédio de sua noiva Solange. Em pouco tempo ganhou ascensão. Como pastor da Igreja em Grajau, colocou-a entre as três maiores do Rio de janeiro. Esse feito o levaria à liderança na Bahia. Bonito e carismático, o pastor Paulo Roberto recebia mais cartinhas ele amor e propostas indecentes do que pedidos de oração. Sempre fiel ao bispo Macedo, ele foi um dos que se alinharam ao seu lado na crise que acabou por transformar a Igreja em um negócio lucrativo.

Com a ajuda de Paulo e de vários outros do seu nível, a Igreja Universal deixou de ser uma empresa familiar. Nas fechadas reuniões de pastores, Paulo era sempre citado como modelo e exemplo a ser seguido. O fato de ser o "mauricinho" da Igreja não o incomodava. Ao contrário, isso somente lhe trazia grandes benefícios: quando o motorista do bispo capotou o carro em que viajavam, deixando?o com as duas pernas quebradas, foi o pastor Paulo, da Bahia, que Macedo mandou chamar para substituí-lo na liderança nacional, a partir do Rio de Janeiro.

Paulo era o que todo pastor sonhava ser. O fato de eu ter sido mandado à Bahia para trabalhar diretamente sob a sua supervisão era uma oportunidade que muitos evangelistas dariam tudo para ter. Cada vez mais, tinha certeza de que havia dado o passo certo ao largar tudo para viver em prol clã obra para qual Deus me chamara. Esse chamado ecoou no fundo do meu ser. Nada mais tinha importância para mim. Tudo o que não estivesse relacionado com a Igreja Universal era parte de um outro mundo. E esse outro mundo não me interessava. Nada me fazia mais feliz do que saber que pertencia ao seleto clube dos homens que foram chamados para uma missão divina. Um clube cujos membros que vão desde Abraão e Moisés até São Paulo a São Pedro. Isso fazia com que eu me sentisse um privilegiado. E eu era imensamente grato a Deus por ser um dos Seus escolhidos.

Para ser treinado, fui enviado à cidade de Paulo Afonso, como auxiliar do pastor Jailton Vieira. Com ele, eu apresentava o programa O despertar da fé e aprendia a fazer reuniões para um grande número de pessoas. E logo entendi que duas qualidades são essenciais para ser um pastor de sucesso na Igreja Universal. A primeira é ter a capacidade de canalizar ofertas expressivas. A segunda é saber entreter o povo e segurá-lo nas "correntes". Nessas matérias, eu estava superando as melhores expectativas de meus professores.

Na Igreja Universal elo Reino de Deus existe uma fórmula padrão para se fazer um culto. Sempre que alguém entrasse nos nossos templos, teria de ver a mesma coisa, não importando se estava em Belo Horizonte, Bogotá ou Buenos Aires.

Os cultos eram feitos com gritos frenéticos dos apresentadores e a participação ativa da platéia. Esse espetáculo espiritual é dividido em duas partes e chega ao clímax quando são realizados os exorcismos. Nesse momento, pessoas aos gritos começam a rolar pelo chão e jogar para cima os bancos clã igreja. Algumas chegam a entrar em luta corporal com os pastores e obreiros. Aos que vinham pela primeira vez, explicávamos que aquelas pessoas estavam possuídas por demônios e ensinávamos que eram esses espíritos malignos a fonte ele mazelas como desemprego, problemas financeiros e amorosos. Dizíamos também que as doenças eram sinais físicos dessa possessão demoníaca e, uma vez que estes espíritos eram expulsos, as pessoas ficavam curadas de toda a sorte de enfermidades.

Geralmente entrevistávamos os endemoniados e, para mostrar ao respeitável público que tínhamos poder sobre eles, fazíamos com que essas pessoas andassem de joelhos ao redor da igreja, ou batessem a cabeça nos nossos pés, ou latissem ou ainda que imitassem galinhas, porco s e outros animais. Isso dependia da imaginação de cada pastor.

Depois dos exorcismos, enquanto o povo explodia em aplausos e gritos de júbilo, do alto do púlpito nós agradecíamos os louvores. Mesmo sabendo que aqueles "demônios" nada mais eram do que pessoas em busca de alguma atenção ou sofrendo de seriíssimas crises emocionais, nossa atitude era indefectível.

Mas era na segunda parte do culto que o pastor tinha de "provar a que veio". O seu futuro como pastor dependia daquela hora e ele precisava ser cauteloso. Nem tão agressivo para não demonstrar ganância, nem tão passivo a ponto de deixar transparecer insegurança.

Nenhuma outra passagem da Bíblia é tão exaltada e divulgada na Igreja Universal quanto o "Trazei todos os dízimos e ofertas", de Malaquias (3:10). Pedir ofertas não era uma tarefa fácil, e bem-aventurado era o pastor que dominava a arte de fazer com que as pessoas abrissem seus bolsos ou assinassem cheques a fundo perdido.

Esses pastores eram poucos. Eles eram os reis da lábia. Pelos seus esforços, recebiam tratamento diferenciado: ganhavam bons carros, bons salários, boas roupas e boas moradas. Eles eram o crème de la crème da Igreja. Ou "notáveis", como se autodefiniam. As mordomias eram uma recompensa pela habilidade. Basicamente, essa habilidade consistia em passar uma hora pedindo dinheiro, em valores decrescentes, e ainda fazer com que o saque parecesse uma singela parte do culto. Um singelo ritual em que os fiéis ajudam a manter o bom funcionamento da obra de Deus.

Muitos pastores, por timidez diante do público ou por serem contra a total falta de transparência do roteiro do dinheiro, simplesmente não se esforçavam para levantar ofertas. Esses pastores formavam a ala conservadora da Igreja e sempre eram mandados embora na primeira oportunidade. Bem-feito para eles: em vez de pedir altas ofertas e fazer macaquices no púlpito para entreter o povo, optavam por pregar tolices como salvação da alma ou tópicos que a ninguém importavam, como a segunda vinda de Cristo ou o dia do Juízo Final. Ladainhas.


Paulo Afonso era uma dessas cidadezinhas baianas que servem de pano de fundo para romances de Jorge Amado. Lá estava a pracinha no centro, a paróquia, que de vez em quando promovia uma quermesse, e a "casa da luz vermelha". O lugar guardava também dois dos esconderijos preferidos de Lampião: a Gruta do Morcego e o Raso da Catarina.

A cidade estava localizada bem no meio daquela paisagem do sertão nordestino que trazem à lembrança a canção Asa branca. Porém, porque tivera a sorte de entrar no caminho do Velho Chico, Paulo Afonso se orgulhava do verde abundante de suas matas, da variedade de sua fauna e da majestade das suas cachoeiras, principalmente a Véu de Noiva, que, dançando ao som de suas águas, dava à gente simples daquele lugar um magnífico espetáculo de esplêndida beleza.

O que mais me chamou a atenção naquele lugar foi a beleza das mulheres. Em particular uma que freqüentava a nossa Igreja diaria mente. Seu nome era Lizete. Ou Liz, como gostava de ser chamada. Ela era a encarnação de tudo aquilo que se espera de uma mulher baiana: cabelos negros, pele de bronze e um lindo sorriso de porcelana. Aos quinze anos, precocemente mulher. Ao notar meu interesse por Liz, o pastor Vieira tratou logo de impedir que eu me envolvesse com a moça. Na sua opinião, ela não era a pessoa indicada para mim. Liz freqüentava a igreja havia menos de dois meses e somente o fazia porque era forçada pela mãe. Desde que o pai morrera tragicamente, enquanto trabalhava na CHESF, ela se tornara uma jovem fechada e rebelde. Seu relacionamento com as pessoas era extremamente difícil e tudo piorou quando começou a se envolver com um homem muito vezes mais velho do que ela. Pelo menos de minha parte, começou a brotar um certo interesse. Meu único problema era não saber como demonstrar a ela meus sentimentos. Eu nunca havia tido uma namorada antes. Todos os meus pensamentos e desejos eram voltados para a religião. Prazeres carnais não faziam parte deles. Ensinaram-me que sexo era uma dádiva de Deus, com o propósito de unir o homem e a mulher num só corpo em uma abençoada conjunção carnal. Uma relação de amor físico que era privilégio exclusivo de casados.

Eu me orgulhava de ainda ser virgem. Era essa a coisa mais preciosa que eu havia consagrado a Deus: a minha virgindade. Fiz a promessa de que me guardaria puro até o dia em que encontrasse a moça pela qual me apaixonaria, e assim, de acordo com os desígnios divinos, seríamos dois em um. Mas, ao contrário de mim, Liz tinha uma vida sexual ativa e esse foi o motivo da não-aprovação do pastor Vieira. Ela era a típica moça mal-falada em uma cidadezinha do interior: "Se perdeu cedo"; "Brinquedo de homem grande", diziam. Ela não merecia o amor de nenhum rapaz direito. Muito menos de um aspirante a pastor.

Sabia que estava errado em me deixar levar por aquele sentimento, mas não conseguia evitar. Pensava nela o tempo todo. Sonhava com ela. Sonhos que jamais tivera. Apesar de tentar disfarçar, não foi difícil para Liz perceber que eu a desejava.

Quando ela começou a me mandar cartas e me olhar de um jeito diferente, achei que estava querendo brincar com meus sentimentos. Mas logo descobri que ela sentia por mim o mesmo que eu sentia por ela. Trocávamos cartas todos os dias. Ela vinha para os cultos e antes de ir embora me dava alguns pedidos de oração e entre eles uma carta. Ao que eu retribuía. As cartas de Liz eram recheadas de emoção e calorosas revelações quanto ao que ela sentia por mim. Já as minhas eram vitorianas confissões de amor, acrescidas de citações bíblicas. Afinal, não queria apenas tê-la, mas também convertê-la. Sentia-me profundamente culpado por estar gostando daquela moça. Era como se estivesse praticando o maior de todos os pecados, apesar de nunca tê-la tocado. Aquilo já estava interferindo na minha vida espiritual. Comecei a ter conflitos interiores e me autoflagelava com orações e jejum na busca de purificação.

"Preciso te ver hoje à noite na pracinha." Não sabia o que fazer quando recebi o bilhete com essa frase. Contar ao pastor Vieira nem chegava ser uma alternativa. Afinal de contas, ele era totalmente contra que eu tivesse qualquer contato com Liz. Finalmente decidi ir e ouvir o que ela tinha para me dizer.

Depois das sete horas da noite, Paulo Afonso parecia uma cidade fantasma de faroeste italiano. Naquele dia, eu e Liz éramos as únicas pessoas na praça. Sentados em um banco e de mãos dadas, trocávamos olhares apaixonados e tentávamos explicar o que estava se passando entre nós. Disse-lhe que apesar de amá-la loucamente não permitiria pedras no meu caminho rumo à obra de Deus. Eu tinha uma vocação.

Um chamado. Uma missão. Nada me impediria de ir até o fim, nem mesmo meu amor por ela. Se era assim, disse-me ela, se a Igreja não nos aceitava juntos, então que fugíssemos, que fôssemos morar com uma tia dela em Delmiro Gouveia.

Era como se ela não entendesse nada do que eu tentava explicar. Não havia abandonado os meus pais e renunciado à minha vida para acabar ordenhando cabras e vacas sem leite no interior de Alagoas. Naquela noite, ao se despedir de mim, Liz beijou-me cálida e sofregamente. Foi o meu primeiro beijo.

Meu aprendizado em Paulo Afonso chegara ao fim. O pastor Paulo ordenou que eu voltasse para Salvador. Lá, o crescimento da Igreja demandava pessoas treinadas e familiarizadas com o trabalho. Mais uma vez, eu me preparava para partir. Ao chegar à rodoviária, encontrei Liz, que me esperava com uma bolsa de roupa.

- Me leva com você - disse ela.

- Liz, eu não posso. Nós já conversamos sobre isso - respondi.

Como eu queria beijá-la de novo, repetir aquela noite na praça.

- Você precisa ficar aqui - prossegui. - Pense na sua mãe, nos seus irmãos pequenos. Eles precisam de você.

- Eles podem viver sem mim. Estou farta deles. Estou cansada deste lugar, das pessoas fofoqueiras deste lugar. Eu quero ir embora. Por favor, me leva contigo.

Quando ela percebeu que não conseguiria me demover, mudou de tática.

- Então promete que volta pra me buscar? - disse ela chorando.

Não sei como consegui resistir àquelas lágrimas.

- Liz, eu não posso prometer isso. Nós fazemos planos, mas a última palavra vem de Deus. Os nossos planos não são os d'Ele.

- Deus! Deus! Sempre Deus! Será que vocês não pensam em outra coisa? Se não me quer, pelo menos seja homem suficiente pra dizer isso!

Eu a queria, mas não sabia o que dizer, o que fazer, como agir.

- Por favor, promete - insistiu ela.

- Lizete, eu prometo que voltarei para te buscar... se Deus assim quiser.

Então, ela me abraçou tão forte que pude sentir seu coração bater junto ao meu peito. Naquele momento, confortavelmente entregue aos seus braços, a idéia de ordenhar cabras e vacas magricelas em Delmiro Gouveia não me pareceu tão terrível assim.

O ônibus começou a longa jornada passando pela placa que, fincada no acostamento da estrada, dizia: "Bem-vindo à Princesinha do Nordeste". Lá atrás, ainda pude ver o vulto de Liz, que me acenava. Até logo! Até amanhã! Volte! Não vá. E todo um discurso sofrido que eu podia ler naquele simples balançar de sua mão.

Foi a última vez que a vi.


Minha ida para Salvador marcou o princípio da minha ascensão na Igreja Universal. Fui escalado para ficar na sede, na ladeira do Aquidabã. A igreja era um fenômeno de público. Todos os dias centenas de Fiéis lotavam o templo. Muita gente esperava a vez de entrar e, finalmente, receber nossas bênçãos. Espalhada pela ladeira, a multidão causava transtornos no trânsito e, muitas vezes, fechava as vias de acesso à Baixa do Sapateiro e à Barroquinha.

Declaramos guerra às religiões africanas, sustentáculo da fé baiana. Guerra à Igreja Católica, nossa maior inimiga. E guerra até mesmo às igrejas protestantes, como a pentecostal Deus é Amor, que nós tachávamos de "candomblé evangélico", e a Assembléia de Deus, para nós um bando de "crentões" e "fanáticos". Nas rodinhas de pastores sempre aparecia alguém contando alguma piada de profundo mau gosto sobre as mulheres da Assembléia de Deus, que, diziam, não se depilavam e não usavam desodorante por considerarem pecado.

A Igreja Universal, onde era proibido proibir, era apresentada como o único caminho da felicidade. A verdadeira igreja de Cristo ou "o vinho novo", como gostávamos de anunciar.

Jogávamos pesado nos programas de televisão. Quebrávamos imagens de santos católicos e, durante os cultos, queimávamos as roupas de candomblé e colares de miçangas levados pelos filhos-de-santo que se convertiam. O povo vibrava. Nós o fazíamos vibrar.

Não é preciso repetir aqui que o povo gosta de pão e circo.

Desenvolvi um estilo. Defini um discurso simples, mas poderosamente convincente para levar a mensagem da Igreja. Isso me rendeu o cargo de terceiro pastor no Aquidabã. Acima de mim, apenas os pastores Paulo e Gonçalves. Líder e vice-líder.

A promoção me conferia um status. Por exemplo, passeia conduzir reuniões com centenas de pessoas, além de apresentar programas nas rád ios Cruzeiro e Excelsior e participar do Despertar da fé, na TV Itapoan. Nos fins de semana, viajava pelo interior do estado fazendo campanhas de evangelização, lotando templos por onde quer que passasse.

Considerando que eu estava na Igreja há pouco mais de um ano, minha escalada era meteórica. Meus dias de dormir sobre assoalho gélido e bancos de madeira haviam chegado ao fim. Logo passei a dividir um confortável apartamento com o pastor Gonçalves e outros dois pastores. As roupas surradas que eu usava deram lugar a ternos de grife e, num piscar de olhos, me vi freqüentando restaurantes finos e viajando de avião.

A primeira vez que volteia São Gonçalo desde que me mudara para a Bahia foi memorável. Cheguei à Boa Vista com uma mala cheia de presentes para minha família e amigos. Naquele dia, transformeime na sensação da rua. Velhos conhecidos e vizinhos vieram só para me ver. Do alto do meu pedestal, eu criticava a poeira e o calor daquele lugar. E exaltava as maravilhas da civilização moderna. De como era confortável viver com telefone. Assistir à televisão em um aparelho que mostrava dois canais ao mesmo tempo. E, o que é o progresso, ter na cozinha uma geladeira que não precisava abrir a porta para tirar a água.

Alguns me chamaram de ladrão, mas eu não dei ouvidos às "vozes da inveja", como diziam meus pais, orgulhosos do filho que estava na Bahia falando para multidões em rádio e televisão. "Graças a Deus", diziam eles, "nosso filho não é como Ney ou Denilton, que só dão desgosto aos pais".

O sucesso da Igreja e dos programas de rádio e televisão estava baseado na fórmula infalível criada pelo bispo Macedo: a terapia espiritual. Trabalhávamos diretamente com as emoções das pessoas. Por isso muitas pessoas afirmam que quando ouvem o rádio sentem como se o pastor estivesse falando diretamente com elas. Na nossa programação comentávamos, ao som do piano de Richard Clayderman ou da flauta de Zamfir, os problemas que afligem a maioria dos humanos: desemprego, vícios, doenças, problemas conjugais e financeiros. Depois de um debate no qual discutíamos os efeitos desses problemas na vida das pessoas, apresentávamos a solução para tudo isso como uma única visita a um dos endereços da Igreja. Uma vez que a pessoa ia à igreja, ela era orientada a fazer uma corrente de doze semanas. Corrente na qual ela viria a se tornar emocionalmente presa. Os que quebravam essa corrente imediatamente passavam a ter visões e ouvir vozes. Como Hollywood, nós sabíamos explorar o medo infantil que as pessoas têm da figura do diabo

Informado do sucesso na Bahia, o bispo Macedo resolveu marcar uma concentração no maior estádio de Salvador. Ele havia acabado de lotar o Maracanã. E estava disposto a lotar todos os estádios das grandes capitais. Dois meses antes começamos a trabalhar na promoção do que seria o maior de todos os nossos desafios: lotar o Fonte Nova. Queríamos mostrar aos padres, pastores, pais e mães?de?santo da Bahia que o reinado deles havia acabado. Éramos nós quem dávamos as cartas agora. Também queríamos mostrar aos pastores da própria Universal em outros estados que nós, da Bahia, éramos os melhores.

Todos os pastores do interior ficaram incumbidos de alugar um ônibus e levar o maior número de pessoas possível. Vinhetas nas rádios e nas televisões, outdoors espalhados pelo estado prometiam curas e soluções. Durante as reuniões na igreja, distribuíamos envelopes e fazíamos com que os fiéis colocassem ali o que chamávamos de "oferta de sacrifício" (algo como o salário do mês) e um pedido de oração, que o bispo levaria para Israel, a Terra Santa. No dia clã tão propalada concentração, uma multidão já se aglomerava ao redor do estádio muito antes de os portões serem abertos, às nove da manhã. Quando, enfim, o Woodstock religioso começou, milhares de pessoas, pisoteando velhinhas e crianças, travaram uma disputa agressiva para obter um bom lugar para ouvir o bispo e receber dele os milagres, que era o que interessava àquela gente. Naquela época em que o termo yuppie estava em voga, o bispo Macedo, portando Rolex, Ray-ban, Mont Blanc e a sempre presente Hermès, subiu no palanque que fora especialmente armado para ele no centro do gramado. Não conseguia esconder sua alegria. O estádio da Fonte Nova estava completamente lotado. Repetia?se em Salvador o fenômeno do Maracanã, no Rio.

Naquela tarde, depois de recolher os envelopes com o "sacrifício" e com os pedidos de oração, que seriam levados para o monte das Oliveiras, em Jerusalém, o bispo pediu aos seus seguidores baianos uma oferta especial para comprar uma emissora de rádio em Salvador, assim como seus fiéis cariocas o haviam contemplado com a rádio Copacabana.

- Será que. os cariocas têm mais fé que os baianos? - perguntou o bispo à multidão.

- NÃO! - a resposta retumbou como um trovão.

As ofertas vieram em forma de dinheiro e jóias. Passamos três dias trancados em uma sala contando os sacos de dinheiro levantados no Fonte Nova. No final, o dinheiro foi depositado na conta da Igreja, no Bradesco, em Salvador. O ouro seria levado para o Rio de janeiro e transformado em barras. Quanto aos pedidos de oração que seriam levados para Israel - bem, eles foram queimados na praia da Boca do Rio.

Quando eu era um simples fiel, não imaginava o que se passava nos bastidores, depois que a cortina cai. Os atos de alguns pastores logo me levaram a descobrir que a Igreja Universal nada mais era do que uma empresa com fins lucrativos como qualquer outra na ciranda financeira. A única diferença era o produto vendido: sal que tira vício, lencinhos molhados no "vinho curativo" --o conhecido K-Suco--, água da Embasa, que dizíamos ter vindo do Rio Jordão, azeite Galo, que dávamos ao povo como legítimo óleo ungido proveniente de Jerusalém, e uma longa lista de outros produtos tão falsos quanto as gotas de leite extraídos dos seios da Virgem Maria, que eram vendidas na Europa, nos primeiros séculos, aos otários em busca de milagres.

Como ser pastor era antes de tudo uma "vocação" e jamais uma "profissão", não tínhamos vínculo empregatício com a Igreja Universal. Nossos salários eram pagos em cash, isentos de qualquer taxa ou imposto. O valor desses salários variavam: cada caso era um caso nas leis do Reino.

Apesar de sermos estritamente proibidos de comentar nossos ganhos uns com os outros, sabíamos da injustiça salarial. Pois enquanto dirigentes de igrejinhas de periferia ganhavam salários minguados e insuficientes para sustentar a família, os pastores notáveis trocavam de carro a cada ano e passavam fins de semana em esorts acompanhados de suas belas mulheres trajando Chanel e portando bolsas Luis Vuitton.

***

Mario Justino é ex-pastor da Igreja Universal do Reino de Deus e atualmente mora em Nova York. O texto acima faz parte do livro Nos Bastidores do Reino: A Vida Secreta na Igreja Universal do Reino de Deus, publicado em 1995.

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