Os Porquês de Ser Ateu

A imensa maioria dos teístas se recusa a entender, mas os ateus possuem diversos motivos que fundamentam sua recusa de aceitar a crença em qualquer divindade. Há abaixo sete grandes razões, mas muitos descrentes afirmam possuir várias outras:

1. Seguindo a lógica da comparação de religiões, torna-se virtualmente impossível descobrir se existe uma religião verdadeira, por diversos motivos, dos quais se destacam:

a) Muitas religiões copiam ou incorporam elementos (incluindo deuses e modelos de divindade e mitos) de crenças mais antigas. Os exemplos mais identificáveis com a civilização ocidental são:
- a mitologia romana, que, de ter absorvido tantos elementos gregos na integração cultural com a Magna Grécia (colônias gregas na Península Itálica e da Sicília), gera a falsa idéia de que o único ponto em que difere da religião helênica é o nome dos deuses;
- e o próprio cristianismo católico, possuidor de muitos pontos assimilados de culturas pagãs mediterrâneas e mesopotâmicas. Deduz-se que a intenção da ascendente Igreja era facilitar a conversão dos politeístas, uma vez que suas tradições e identidade culturais e não seriam tão abruptamente quebradas e o impacto do "tsunami" cristão seria suavizado. Exemplos são: a) os santos, com poderes de semideus, atributos funcionais de divindades coadjuvantes (santo do casamento, santo das causas impossíveis, santo dos padeiros, santo do comércio, etc.), função de patronato sagrado de lugares (assim como Athena era a deusa padroeira de Atenas e Marduk era o deus protetor da cidade da Babilônia, São Sebastião é o padroeiro da cidade do Rio de Janeiro e Nossa Senhora do Carmo é a de Recife) e dias de homenagem reservada (como o 24 de junho dedicado a São João); b) a presença de uma trindade suprema -- Pai, Filho e Espírito Santo --, elemento muito comum nas mais diversas religiões (Zeus, Poseidon e Hades; Ra, Ísis e Osíris; Brahma, Vishnu e Shiva; Odin, Thor e Freyr; etc.); c) uma personagem maternal sagrada -- a Virgem Maria -- possuidora de muitas características de certas deusas e personalidades pagãs, como a fecundidade divina, a gravidez virginal e o atributo de "Rainha do Universo".
Como confiar numa religião que, ao mesmo tempo em que se julga a única verdadeira, absorveu para si elementos de muitas das próprias crenças acusadas por ela como falsas?


b) A maioria das religiões costuma ter crenças mutuamente excludentes e considera-se individualmente portadora das "únicas verdades absolutas". Mesmo quando possuem elementos-raiz em comum, a exemplo das religiões cultivadas pelos povos indo-europeus, sua superposição em uma realidade única é inviável. É impossível, por exemplo, que Odin, Oxalá e Javé; Asgard, o Olimpo e o Céu cristão; as cosmogonias egípcia, asteca e judaica; Jesus, Hércules, Krishna e Cú-chulainn (herói lendário celta); sejam simultaneamente verdadeiros e reais. Uma vez que duas mitologias não podem existir ao mesmo tempo na mesma realidade, fica a constatação de que só é possível escolher uma. Mas a questão é: como descobrir qual é a real? Como ter êxito ao se lançar na tentativa-e-erro diante de uma lista de MILHARES de mitologias que constam nos registros históricos dos últimos 10 mil anos da humanidade? O que faz uma ser mais provável do que outra?

c) Fora das narrativas mitológicas, deuses de uma religião são totalmente inócuos contra fiéis de outras crenças. Por exemplo, cristãos nunca sofreram punições dos deuses astecas -- mesmo quando foram responsáveis pelo extermínio das suas mais fiéis criaturas --; o deus cristão jamais puniu hindus, xintoístas, animistas, neopagãos, etc. por sua fé em deuses "falsos" e episódios ocasionais de rejeição convicta de sua existência como deus único; os deuses maias jamais tocaram um dedo nos índios norte-americanos por sua descrença neles; as divindades da provável religião proto-indo-européia têm sua "existência" ignorada por toda a humanidade atual e nunca fizeram nada com ninguém por isso.

2. Não existem provas da existência de qualquer deus, entidade sobrenatural ou mito descritos por qualquer religião. Fontes científicas confiáveis encontram com grande freqüência provas que anulam ou inviabilizam a quase totalidade das "teorias" escritas nos mitos religiosos. Por exemplo: o Sol não é um deus, mas apenas uma entre 10²² estrelas estimativamente existentes no Universo; a Geologia e a Astronomia provaram que a Terra surgiu há 4,5 bilhões de anos, e não há menos de seis mil como o criacionismo bíblico (considerando a "teoria da Terra Jovem") narra; fósseis comprovam que não surgimos de um único casal gerado por abiogênese divinamente controlada, mas sim de muitas gerações de milhões de primatas hominídeos ao longo de milhões de anos. Supostas comprovações de teorias criacionistas e da existência de, por exemplo, espíritos, fantasmas e demônios sempre são rapidamente desmascaradas como pseudocientíficas e/ou forjadas. Afirmações do tipo "se Deus não existisse, nada existiria" ou "sentindo o amor, você sente Deus" não são consideradas pelos descrentes por poderem ser aplicadas a qualquer divindade -- por exemplo, o sentimento do amor tanto poderia ser atribuído a Jeová como a Afrodite, a Freyja ou à Deusa-Mãe, e a existência do mundo pode ser um fato atribuído à existência tanto de um como de muitos deuses associados. Como, ao mesmo tempo em que não existem evidências confiáveis da existência ou veracidade de nenhum deus, mito ou entidade sobrenatural diversa, as descobertas científicas indicam exatamente o contrário -- embora a ciência não tenha o compromisso de comprovar que uma mitologia fala ou não a verdade --, o mais lógico seria não crer em nenhum deles.

3. Fé x Razão: os ateus são predominantemente guiados pela Razão e pela Lógica e seu conhecimento é provido pela ciência, em vez de porem sua orientação psicológica e suas convicções sobre a realidade na guarida do sentimento de fé. Fé existe em todas as religiões, e fés religiosas se chocam em quase todos os casos. O único fator que ainda dá ao religioso a certeza de que deus(es) existe(m) e seu(s) livro(s) sagrado(s) é(são) verdadeiro(s) e confiável(is) é a fé, quando os frágeis argumentos de defesa da veracidade da religião e as supostas provas "científicas" pró-religiosas, normalmente forjadas por métodos desonestos e pseudocientíficos, são derrubados pela argumentação racional, científica e lógica. Os ateus, quando hipoteticamente querem pensar sobre ter fé, imediatamente indagam: que fé sentir? Qual fé religiosa dá a genuína "comprovação" da verdade absoluta? Ao contrário da maioria dos religiosos, eles não dividem o panorama de "concorrência" apenas entre, por exemplo, cristãos e ateus, mas sim entre cristãos, muçulmanos, budistas, astecas, celtas, asatruares, hindus, xintoístas, maias, judeus, yorubás, zoroastras... e ateus.

4. Se religiões em geral não são convincentes como convicções de vida pelos ateus, a crença em algumas delas se faz até intragável, pela presença de muitas contradições e absurdos em seu(s) livro(s) sagrado(s). Como aceitar, por exemplo, um deus que legisla a favor da homofobia, misoginia e intolerância ou uma religião cujo livro sagrado prega ao mesmo tempo dois ensinamentos exatamente opostos? O exemplo clássico na civilização ocidental é a Bíblia cristã, que se trata da compilação de várias escrituras feitas ao longo de séculos nas Idades do Bronze e do Ferro do Oriente Médio. Como a maior parte da doutrina cristã encontra pontos em comum nos diversos sub-livros integrantes da Bíblia, há a consistência de livro unificado, o que lhe confere a unidade, mas já está comprovada a existência de no mínimo centenas de passagens contraditórias ou consistidas na crueldade e no absurdo moral dentro dela.

Eis alguns poucos exemplos de contradições, que são apenas uma ponta de iceberg mas já tocam questões fundamentais da filosofia e mitologia cristã:
a) Deus sabe ou não o que se passa no "coração" de cada pessoa? Salmos 44:21 e Atos 01:24 alegam que ele sabe sim, mas Deuteronômio 13:03 e II Crônicas 32:21 relatam passagens em que precisou testar os fiéis para saber o que se passava em seus "corações";
b) Os mortos estão conscientes ou não? Eclesiastes 09:10 e Salmos 06:05 dizem claramente que não, mas Mateus 17:02,03 e Lucas 19:22,23 desmentem e descrevem pessoas conscientes no além.
c) Predestinação ou livre-arbítrio? Efésios 01:05 e Provérbios 16:08 falam que o homem já nasce predestinado à salvação ou à perdição. Mas II Pedro 03:09 e Ezequiel 18:23 demonstram a existência do livre-arbítrio, em que a pessoa escolherá caminhos que podem levá-la ora a ser salva ora a "cair".

Absurdos éticos também estão presentes em grande quantidade. A mesma Bíblia que nos convida a "amar uns aos outros" e "promover a paz" possui passagens como essas:
a) Em Mateus 10:34, Jesus afirma que "não veio trazer paz, mas espada". Se interpretado ao pé da letra, o versículo denuncia um Cristo belicoso. Numa interpretação metafórica um tanto forçada, significa uma convocação de "guerra espiritual" às sociedades da época e uma ordem de converter os gentios (pagãos). Então nos vemos diante de duas perniciosidades: ora é uma orientação divina à guerra ora demonstra intolerância religiosa -- algo cujo poder maligno todo ateu conhece -- e disposição de quebrar a identidade cultural dos povos.
b) Êxodo 15:3, Salmos 144:1, Joel 3:9 e I Crônicas 5:22 são exemplos de passagens em que Deus claramente incita a guerra -- com o detalhe de que entram em contradição com tantos outros versículos que dão ao mesmo deus o dom de promover a paz. Guerra, como qualquer pessoa sã sabe, é algo hoje considerado no mínimo abominável, reprovável e que ninguém de boa índole pensa em praticar, exceto em casos de defesa contra uma agressão militar vinda de outra nação.
c) Levítico 25:44-46, trecho da antiga lei outorgada por Deus aos hebreus, regulamenta claramente a escravidão em sua terra. O que dizer da escravidão hoje, fora que é crime em todo o mundo exceto em alguns rincões muito atrasados?

Nenhum ateu considera escrituras tão contraditórias e absurdas assim "palavras sagradas". Além do mais, é relevante notar que todas as denominações cristãs rejeitam inconscientemente partes da própria Bíblia, uma vez que, como já dito, muitas questões filosóficas fundamentais encontram doutrinas diametralmente opostas, e isso, como seria de se esperar, já causou e ainda causa inúmeros conflitos entre cristãos de denominações diferentes e acusações mútuas de "heresia".

Outras religiões também possuem contradições e incorreções em suas escrituras, mas no Brasil não há relatórios facilmente disponíveis ou mesmo prioridade de estudo para apontá-las, até porque não haveria utilidade prática denunciar, por exemplo, possíveis contradições no Bhagavad Gita num país onde menos de cinco mil pessoas se declaram hindus e estão muito longe de ambicionar poder político e hegemonia cultural. Para a rejeição da adesão a religiões não-cristãs pelos ateus, pesam os demais argumentos desta seção.

5. A ciência já desvendou a maior parte das questões de explicação dos aspectos naturais em detrimento das milhares de teorias mitológicas. Antes dela, desde a Pré-História, entidades sobrenaturais e narrativas mitológicas eram -- e ainda são muito -- utilizadas para "explicar" os aspectos da vida, da natureza e da filosofia. Fenômenos como raios, chuvas, arco-íris, eclipses, terremotos e erupções vulcânicas eram -- e, por inacreditável que pareça, em muitos lugares de educação científica débil ainda são -- atribuídos a sentimentos de deuses. A origem do mundo e da vida é explicada pelos mitos de cosmogonia. Dilemas como o sentido da vida e a continuidade ou não da existência após a morte são "solucionados" na maioria das religiões pela existência de mundos paralelos fantásticos (habitados por deuses bons, heróis e almas de pessoas boas) ou abomináveis (habitados por deuses maus, entidades demoníacas e almas de pessoas ruins condenadas pelo julgamento divino). Também não podemos deixar de pensar aqui nos espíritos, que a maioria das religiões descreve como corpos etéreis e eternos que dão continuidade à vida quando o corpo orgânico falece. A religião dá respostas simples, acalentadoras e fantasiosas a questões muito complexas.

Hoje a ciência está evoluída a ponto que a maioria das questões que as religiões fantasia(va)m já foi desvendada por ela. Hoje sabe-se que chuvas, raios e arco-íris são fenômenos meteorológicos cujos mecanismos aprendemos ainda no Ensino Fundamental 1. Já sabemos a verdadeira mecânica das erupções vulcânicas e dos terremotos graças à Geologia e à Física. Os eclipses são explicados a nós pela Astronomia desde os nossos nove anos de idade. Os deuses foram suplantados pela fenomenologia científica. Já questões como o sentido da vida e o destino dos seres após a morte ainda são lacunas que a ciência e a filosofia da Razão ainda estão longe de preencher. Reparemos que são justamente essas poderosas incógnitas que ainda mantêm as religiões fortes hoje. Quanto aos espíritos, jamais tivemos evidências científicas e laicas da sua existência, tudo o que há hoje de "provas" deles são fotomontagens, mirabolâncias pseudocientíficas e relatos não confiáveis de pessoas religiosas ou fãs de livros e filmes envolvendo essas entidades, então simplesmente desconsideramos sua existência. Os ateus, ou pelo menos a maioria deles, consideram que o único destino que há depois da morte é o nada, a inexistência. Isso não impede que alguns ainda creiam que o ser pode "voltar da inexistência", voltar a existir na forma de outro ser vivo (reencarnação não-espiritual de existência) em lugar qualquer do universo -- ou mesmo em outra dimensão --, do mesmo jeito que nossa existência veio desse nada. Mas é uma questão que não dá para refutar ainda, só teremos algum esboço das primeiras idéias sobre pós-morte quando tivermos tecnologia suficiente para preservar totalmente um cadáver e induzi-lo à reanimação. No final, a hipótese mais lógica do pós-morte é a de que o ser vivo simplesmente deixa de existir, torna-se um nada, eternamente inconsciente. É a hipótese do "morreu, acabou", que nos instiga a viver melhor nossa vida, aproveitarmo-la ao máximo.

6. O interessante é que deuses ou espíritos de determinada mitologia só atuam nas regiões onde são venerados ou conhecidos. Não há, por exemplo, relatos de proezas de Javé na América pré-colombiana, narrativas de atuações dos Kami japoneses na África, vestígios de cultos a deuses astecas na Europa antiga, registros de presença dos orixás africanos na história dos povos indígenas da América do Norte, testemunhos escritos de aparições de Jesus intencionando "salvar" japoneses, chineses ou maoris antes do século 16. Já alegações da "presença" de entidades cristãs como Nossa Senhora pipocam em grande parte do mundo, mas apenas porque a Igreja Católica conseguiu estender sua dominação cultural aos mais variados rincões do mundo por meios muitas vezes violentos. Retome-se também a letra "c" do motivo nº1.

7. Os ateus encaram a realidade: como, num mundo cheio de fome, miséria, guerras, catástrofes naturais e episódios de extinção majoritária de espécies de seres vivos, num universo onde estrelas incham engolindo planetas -- muitos dos quais possuem exuberante diversidade ecológica -- e asteróides obliteram grandes aglomerações de vida em planetas e satélites, ainda dá para ter certeza de que há um ou mais deuses onipotentemente bondosos, misericordiosos e cheios de amor tomando conta da humanidade, da natureza? Alguns alegam a surrada desculpa do livre-arbítrio, então é de se perguntar também: e os animais de espécies extintas, as crianças vítimas de câncer, os civis mortos em guerras, as pessoas inocentes vítimas de desastres geológicos ou meteorológicos, que livre-arbítrio eles tiveram? Quem é que vai acreditar num "deus protetor das florestas" numa época em que menos de 1% das florestas da Antiguidade resiste na Europa e a Mata Atlântica no Brasil está reduzida a menos de 10% da extensão original? E eis uma terceira pergunta que não quer calar de jeito nenhum: por que Deus, os Deuses ou os Espíritos permitem a existência do atual sistema mundial de mega-zôo-genocídios e exploração sistemática de bichos domesticados? Os animais não-humanos também não têm direito a proteção divina? Diante dessa dura realidade, é até uma infantilidade continuar tendo convicção de que deuses pessoais onipotentemente bondosos e bem-sucedidos em sua guarda de pessoas existem.

Robson Fernando 

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